Eu era ainda um rapazinho magricela e estava imensamente feliz naquele ano por uma vizinha, que trabalhava de telefonista na Presidência da República e conhecia uma infinidade de oficiais de patente, ter conseguido minha liberação do serviço militar obrigatório e, além de tudo, eu não carregar mais espinhas no rosto e estar livre para ingressar no meu primeiro emprego como caixa de banco.
Estava imensamente feliz quando o tesoureiro me comunicou que eu, logo no meu primeiro dia, vestido com uma gravata de crochê cinza e camisa branca de mangas longas, ocuparia um guichê de atendimento e seria treinado pelo chefe da bateria dos caixas. Era dia de pagamentos e as filas se estendiam em todos os guichês como tentáculos de um monstro disforme. O chefe era gentil e ia me instruindo conforme se dava a saída ou entrada de numerários. Eu contava o dinheiro, apertava as pesadas teclas da máquina registradora, descia a manivela de autenticação, carimbava e rubricava os documentos tentando não cometer erros. Decorridas duas horas, senti-me mais seguro daquela rotina. Espiava o chefe ao meu lado e ele parecia satisfeito com o meu desempenho. A fila ia se encurtando e rapidamente voltava a se espichar. Perto do fim do expediente, devolvi o troco de uma senhora e, logo em seguida, para a minha vergonha, a ouvi dizer, para que o restante da fila escutasse:
“Se você, meu filho, depender de comissão por produtividade, com a velocidade que trabalha, vai passar é fome.”
Eu prosseguiria dois anos acorrentado àquelas galés. Ganhava pouco e trabalhava muito. No entanto, existia uma razão maior para minha sujeição: eu finalmente tinha grana para comprar discos e livros. Essa era minha fome.
Uma curiosidade que noto nas entrevistas que concedi a respeito da minha formação enquanto escritor é que o foco de interesse se dirige sempre para os livros lidos e seus autores, ignorando-se o forte papel que a música, particularmente o rock, exerceu em minha sensibilidade e determinaria o tipo de escrita a ser desenvolvida por mim.
Naquele período eu estava envolvido com uma turma de colecionadores de fitas cassete com gravações piratas e raridades. Muitas delas eram cópias de cópias traficadas por uma rede internacional secreta. Era preciso ser um iniciado para gozar do privilégio de ouvir o show onde o Echo & The Bunnymen tocava versões de T. Rex, The Byrds e Velvet Underground; ouvir o álbum Frankenchrist, do Dead Kennedys, recém-lançado nos EUA e inédito no Brasil; escutar o Wind of Changes, do The Animals, disco que influenciou Ian Curtis, do Joy Division, na maneira de cantar; e apreciar as demos do primeiro disco da Legião em suas versões alternativas, a apresentação da Plebe Rude ainda com as plebetes ou, por exemplo, Renato Russo ao violão como o Trovador Solitário. Éramos como os monges do Scriptorium num tempo pré-streaming-e-YouTube.
Dentre todos os grupos de qualquer tempo e lugar, a banda com que eu mais me identificava era a Legião Urbana, graças a verve crítica e poética do seu vocalista. Então, com o meu primeiro salário, tratei de comprar o vinil do primeiro disco, aposentando de vez uma fitinha surrada com a gravação das mesmas músicas. Por mais que eu soubesse de cor todas as letras, a experiência de as ler no encarte era algo com-ple-ta-men-te diferente, induzia a um novo tipo de emoção e associações.
Imagine-se o impacto de versos como os das canções Petróleo do Futuro, Soldados e Será, para quem vivia os momentos finais de uma ditadura militar extremamente opressora e sangrenta. Ou, um ano depois, com o lançamento do segundo álbum, deparar-se com a complexa imersão lírica nos anseios, sonhos e frustrações de uma geração rotulada como representante de uma década perdida.
Da vida pessoal do cantor, até então eu pouco sabia. Porém, uma das frases que mais ouvi, após declarar minha grande admiração por ele a muitos de meus conhecidos, era de que Renato Russo não era nenhum anjo. E, em seguida, descortinavam um rol de “imperfeições” que, segundo eles, um amigo, ou o amigo de um amigo, dissera: ele tinha um caso com o Negrete; que a razão do Dado e Bonfá integrarem a banda era por serem bonitos; Renato havia tentado suicídio mais de uma vez; era dependente de heroína; que nenhuma de suas letras era completamente original; numa ocasião empurrara uma fã só por ela lhe pedir um abraço; que dera um chilique no aeroporto por causa do atraso de um voo e quebrara uma mesa de vidro jogando nela uma cadeira; era arrogante, instável etc.
Considerando a advertência de Boccaccio a respeito da inclinação humana em acreditar muito mais no mal do que no bem, preferi não lhes dar crédito. Eu ansiava pela oportunidade de encontrar o cantor um dia e perguntar quais eram suas motivações para compor determinadas músicas, descobrir as fontes menos conhecidas de suas inspirações, se sentiu dificuldades criativas ao trabalhar um tema x e, com muita humildade, compartilhar com ele um ou outro poema meu e saber sua opinião. Quanto à rotina de sua vida sexual, para mim, o verso de Petróleo de Futuro, retirado do contexto irônico da letra, se aplicaria bem: “O que é que eu tenho a ver com isso?”.
Voltando ao meu trabalho no banco, em 19 de abril de 1988 eu cumpria aviso prévio por ter passado num concurso público e finalmente poderia sair mais cedo numa sexta-feira. Para fechar com chave de ouro a mudança, marquei com um amigo, o Alan Bueno, para irmos depois do expediente a um show de rock anunciado no jornal. Seria no Teatro de Arena da UnB e tocariam Pânico, Peter Perfeito, Nexo e 5 Generais.
Eu curtia muito o vocal do Rodrigo Leitão, que fora da primeira formação do Finis Africae e agora liderava o Pânico, bem como o som gótico do 5 Generais, com sua versão em português de Marian, do Sister of Mercy, e a música Outro Trago, hit local na rádio.
Como faltava mais de uma hora para o início previsto para as apresentações, escolhemos um bom lugar e nos sentamos. Não havia muito público. De repente, começou um burburinho e quase todos olharam para o mesmo lado. Nós olhamos também e vimos o Renato Russo conversando com o cineasta Vladimir Carvalho perto do palco. Decorrido alguns minutos, o Vladimir se aproximou, disse que gravaria uma entrevista e que todos poderiam assistir, desde que fizessem silêncio.
Com grande naturalidade, Renato falou da infância nos EUA, de sua mudança para Capital Federal aos 12 anos, da influência da cidade em sua formação e da aproximação com o movimento punk, fez distinções entre o rock e a MPB, recusou a pecha de “música de protesto” para suas composições, disse que achava perigosa a insistência na busca pelo “novo” e, perguntado se acompanhava o que estava sendo produzido na atualidade em Brasília, declarou que a distância não permitia isso, mas que ouvira e gostava da Arte no Escuro.
Foi tudo muito rápido. Concluída a gravação, todos se dispersaram e, junto a um amigo, Renato se afastou alguns metros e acendeu um cigarro. Eu e Alan ficamos observando os dois de onde estávamos sentados. Passaram-se uns cinco (e longos) minutos e nada aconteceu. As pessoas continuaram sentadas, conversando entre si, e o Renato lá, fumando tranquilamente com o amigo. Alan cochichou em meu ouvido: “Vamos lá?”.
Era a chance de me aproximar e, se pintasse uma possibilidade, por menor que ela fosse, trocar algumas ideias, fazer perguntas ou, quem sabe, apertar a sua mão e agradecê-lo por tornar minha vida mais rica com a sua arte. Quem sabe não trocaríamos endereços e no futuro eu poderia enviar a ele alguns de meus textos?
“Vamos”, respondi.
Renato estava barbudo e vestia uma camiseta de algodão com uma pequena logo do “Que país é este” no lado esquerdo do peito.
Sorridente, Alan pediu licença e, a um passo de distância, os cumprimentou. Eu o acompanhava um pouquinho atrás. Pensei em cumprimentá-los também, mas não consegui abrir a boca. As lembranças dos comentários maliciosos sobre a arrogância e os chiliques vieram à minha mente e se emaranharam com as perguntas ensaiadas há tanto tempo, com o bonito e emocionante agradecimento que eu não poderia de maneira alguma deixar de fazer. Alan, muito à vontade, pediu um autógrafo.
Renato sorriu, piscou os olhos, jogou a ponta do cigarro fora e respondeu com voz cândida: “Claro. Tem papel e caneta?”.
Eu continuava petrificado. Alan enfiou as mãos nos bolsos de trás e da frente da calça e voltou com mãos nuas. Averiguou o chão ao redor e, sem encontrar nada, se virou para mim. Eu sempre andava com caneta e livro.
“Pode ser aqui?”, estendi a caneta e um exemplar de bolso da Odisseia, edição em papel-jornal, seguidos do fiapo de voz. Renato pegou ambos, examinou a capa e, admirado, exclamou:
“Uau! Homero? Esse sim será um autógrafo que darei com extremo orgulho. Quais os nomes de vocês?”
Ele me devolveu a caneta e o livro, nós agradecemos e voltamos silenciosos e felizes para nossos lugares, aguardando para ver o show.
Alguma coisa escapou ao profeta Daniel ao narrar o sonho do rei Nabudonosor II, no Velho Testamento, e descrever a derrubada de seu ídolo graças aos famigerados pés de barro. Eu apreciava o Renato de longe e via que a tristeza do olhar e o sorriso bobo e tímido possuíam algo da natureza dos anjos. Não desses anjos babacas e inúteis a inflamar a imaginação dos fiéis defensores da Moral & Bons Costumes, essa ruma de carolas insípidas com suas faces luzidias de botox, uma nostalgia atávica dos desfiles de miss e sem emprestar nenhuma expressão de beleza ao mundo. Não. Falo é desses anjos rebeldes que sofrem de uma febril empatia aos mortais, anjos saídos de velhas fitas em preto e branco projetadas em cinemas criminalmente esquecidos, anjos fodidos, que mesmo com as asas feridas não se resignam jamais às sombras e desenham linhas coloridas em seus voos, anjos que riem da petulância alheia e, cientes de suas fragilidades, seus divinos pés de barro, calçam tênis de pano, vestem calças jeans e fumam seus cigarros sem prejudicar ninguém.