Antigamente havia grupos que se digladiavam por conta dos dicionários. Lembro, por exemplo, dos ferrenhos defensores do Houaiss, dos ferozes soldados do Aurélio e dos gloriosos guerreiros do Caldas Aulete.
Quando se encontravam em frente a bibliotecas, eram inevitáveis as escaramuças, com uns disparando adjetivos nos outros. Os mais exaltados chegavam a lançar marcadores de páginas em seus desafetos, e nem preciso citar a famosa Batalha dos Enforcados, quando aurelistas e houaissistas travaram um lendário duelo de jogo de forca (os dois grupos dizem que venceram a contenda).
Acho que hoje em dia estas facções já não são tão fanáticas. Talvez nem existam mais, ou apenas se encontrem em porões escuros, iluminados por tochas, nos quais eles entram cobertos por capuzes negros.
Sim, a coisa está bem mais simples. Imagino que, hoje, ao se deparar com “enxebre”, o leitor apenas digite a palavra no computador e leia a primeira definição que aparecer. Em geral, um tanto pobre, longe de esgotar as possibilidades da palavra. Para mim, por exemplo, apareceu que “enxebre” significa “bruto”, “estúpido”.
Tudo bem, os dicionários internéticos são um tanto palonços, banazolas mesmo, mas são práticos. É bem mais rápido digitar o termo desconhecido do que girar trocentas folhas e procurar a palavra com o dedo. Mas, como já ouvi algumas vezes, a rapidez não basta.
Agora que estou reescrevendo meu primeiro livro, O Chalaça, tive que consultar muitas vezes o meu “pai dos burros” (ele fica ao lado esquerdo do meu computador, do direito fica a garrafa de água). É que, como o narrador escreve na primeira metade do século 19 e tem certos fumos de erudição, às vezes é necessário colocar alguma palavra diferente.
Minha intenção não é torturá-lo nem arrotar conhecimento, mas apenas dar um ar antigo ao texto, conseguir um sentido mais exato e, de quebra, causar uma surpresa no leitor. Ele nem precisa saber direito o que a palavra quer dizer, mas vai compreender pelo sentido da frase.
Confesso que não sou auletista, aurelista, houaissista, michaelista ou priberamista. Tenho um Dicionário de sinónimos da língua portuguesa, de 1949, editado pela Tertúlia Edípica, um grupo charadístico da Sociedade de Geografia de Lisboa. Pensei que valia uma fortuna, mas vi que um foi vendido recentemente por R$ 11,98.
Meu exemplar foi presente de meu avô, quando eu tinha uns dez anos, ou seja, em 1973, e tem uma super libris de couro marrom. Na primeira página está lá seu nome em letra bonita: Edgar Faro Lemos. Logo abaixo, a data da compra: 10/1951.
Só pela assinatura e pela sobrecapa, ele já mereceria meu respeito. Mas, além disso, ele é muito útil. Trata-se de um dicionário de sinônimos purista. Um “zagueiro-zagueiro”, como diria Vanderlei Luxemburgo. Ele não se preocupa em explicar a palavra, em contar sua origem, nem em dizer se é substantivo, verbo ou adjetivo. Apenas enfileira uma fantástica carreira de sinônimos, com palavras belas e estranhas, muitas das quais nunca vi antes.
Para a reescritura de O Chalaça, ele é perfeito. Além de ter um certo sotaque português, é quase contemporâneo ao personagem (ok, exagerei, ou dei uma “espanholada”, como diz o dicionário). Lá, por exemplo, “enxebre” não é apenas “bruto” e “estúpido”, mas também “insípido”, “insulso” e “simples”.
Talvez este seja o segredo dos dicionários: há um para cada utilidade. Se você for escrever algo mais assolhado, precisará de um bem paparrotão. Se for uma escrita mais papalva, basta-lhe um enxebre.