🔓 Dicionário amoroso

Autores brasileiros elegem seus vocábulos preferidos, palavras que atravessam a vida, são ressignificadas, se dobram, abrindo janelas para o mundo
Ilustração: FP Rodrigues
23/03/2022

Era um jantar comum, de dia de semana, quando chegou à mesa a comida de Lia. “Hoje tem inhame”, a mãe anunciou. Foi o suficiente. A menina desembestou a gargalhar, numa estridência que nunca havíamos presenciado. “Inhame”, eu repeti. Ela reiniciou a crise de riso. “Inhame.” Mais uma vez.

Com menos de dois anos de idade, minha filha obviamente não distinguia significante ou significado, esses termos rebuscados da Linguística. A graça, ali, era mesmo o som da palavra, que a pequena tentava reproduzir abrindo ainda mais a vogal ‘a’ para então rir novamente, agora de si mesma.

Nossa relação com as palavras tem dessas coisas. Nem sempre o afeto dispensado a um vocábulo está ligado àquilo que ele nomeia. Pode vir da sonoridade, de uma rima interna, de seus subtextos.

Em 2009, ao lado do escritor português Jorge Reis-Sá, organizei uma antologia chamada Dicionário amoroso da língua portuguesa. O livro reunia textos de 35 autores de diferentes países em que vigora o nosso idioma. Cada qual escolheu sua palavra preferida e, a partir dela, criou um conto, poema ou pequeno ensaio.

Lembro do “deserto” de Tatiana Salem Levy, da “poeira” de Francisco José Viegas, da “sandália” de Ondjaki. Também do poeta Paulo Henriques Britto com seu “peteleco”. Da “neve” de Amilcar Bettega e de “calicatri”, termo que José Luís Peixoto inventou — afinal, o escritor também é um criador de palavras.

Esses vocábulos ecoam num escaninho da memória no qual o inhame perde a materialidade do tubérculo para se transformar num enunciado: a alegria.

No Dicionário amoroso, Henrique Rodrigues elegeu a palavra “você”. Perguntado, treze anos depois, sobre qual indicaria hoje, dobra a ficha. “É a palavra contra a solidão por excelência”, justifica. Marcelino Freire também repete a escolha. No caso dele, um substantivo autorreferente: “‘Palavra’ é a palavra. Porque tem lavra, tem chão, tem terra, tem pá”.

Fiquei curioso em saber os termos que outros autores incluiriam em seu íntimo dicionário. Via Whatsapp — mensagem pra lá, mensagem pra cá —, o papo seguiu.

Alguns optaram pelo sentido. Houve quem preferisse a conjunção de fonemas. Na maioria das vezes, porém, essas duas qualidades se fazem presentes ao mesmo tempo.

Xico Sá, por exemplo, destaca a sonoridade de “cafuné”. Que, além de tudo, traz a ideia de dengo, de carinho. Jessé Andarilho prefere a ambiguidade do termo “vendo”. Ver ou vender? Ambos.

Para Cintia Moscovich, não existe palavra mais bonita do que “aurora”. “Há uma chuva de vogais que se abrem: o “a” e o “o” , mediados pela semivogal que é o “u”. E quer coisa mais linda que a aurora?”, indaga.

Giovana Madalosso pede um tempinho pra pensar e então revela não ter uma palavra predileta. Muda de tempos em tempos. A atual, contudo, é “amplexo”. Tanto pelo som, quanto pela sugestão “de onde partem os melhores abraços”: “Antes do plexo do que da cabeça”.

A poeta Luiza Mussnich fica em dúvida entre “cafuné” e “abismo”, mas acaba se decidindo pela segunda. “Não é de uso corriqueiro, desnuda o sotaque do falante, quase nos faz olhar para baixo num reflexo”, argumenta. E, de lambujem, nos traz um segundo termo, decorrente do substantivo. A expressão “abismar-se”, que remete a surpresa, arrebatamento. “Estar diante de um abismo é perigoso; mas a vista do precipício pode ser belíssima”, resume.

Já Luisa Geisler é tão convicta quanto à sua preferida que a transformou em título de livro. No vocábulo “quiçá”, ela ressalta o sentido, a cedilha e o acento, que formam uma “precisa simetria”. Luisa evoca ainda o significado, originário do Latim “qui sapit” (“quem sabe”). Pra finalizar, cantarola em espanhol: “quizás, quizás, quizás”.

Gustavo Pacheco chega à conversa com um diminutivo. “Devagarinho”, diz, é uma palavra que dificilmente alguém pronunciaria com raiva ou aos gritos. “Pelo contrário, em geral ouvimos uma voz baixa e carinhosa.” Ele sublinha igualmente o som nasal, “tão gostoso e tão peculiar da Língua Portuguesa”.

Outro que forma no time dos cultores do diminutivo é Sérgio Rodrigues. Perguntado sobre sua palavra predileta, não hesita: “Caipirinha”. “E olha que eu digo isso sóbrio”, faz questão de advertir. Cachaça e limão a parte, Sérgio recorda a provável origem tupi do termo “caipira”. “Há quem diga que se relaciona com curupira e caipora. Além disso, dá nome a um produto nacional reconhecido no mundo inteiro e, que não menos importante, é uma delícia.” Deu até sede aqui.

Como se tivesse ouvido lá da Tijuca o convite, Luiz Antonio Simas senta-se à mesa e traz a reboque a “zabumba”. “Adoro a música que o vocábulo guarda. Uma delícia falar e cantar zabumba, lambuzando esse ‘bum’ com gosto”, ressalta, antes de evocar a antropóloga Lélia Gonzalez: “É um termo da ‘língua pretuguesa.’”

A mesma onde Eliana Alves Cruz foi buscar “dengo”. “Uma palavrinha cremosa, que derrete na boca”, diz. E que tem sabor de infância, eu acrescentaria, assim como o “azul” de Edimilson de Almeida Pereira. Seu pai tinha passarinhos em casa e ele, criança, adorava um azulão que cantava na varanda, entre antúrios e samambaias zelosamente cuidados pela mãe. “Essa atmosfera de azul, canto, pai, mãe, plantas na varanda sempre me volta à lembrança”, conta o romancista e poeta.

Foi também na meninice que Socorro Acioli descobriu que “lume” significa “fogo” e, influenciada pela tia entomóloga, se apaixonou por uma palavra “que se movimenta”: “Se eu disser ‘vaga-lume’, já acho que tem uns dez aqui na minha cabeça”.

Terminada a conversa com meus colegas escritores, tão marcada por esses reflexos da infância, perguntei à Lia se lembrava da história do inhame. Que nada.

Hoje, aos seis anos, ela já não ri ao ouvir o termo. Inhame se tornou apenas um alimento. Mas há, como vimos aqui, vocábulos que atravessam a vida, são ressignificados, se dobram, abrindo janelas para o mundo. Penso na resposta do romancista Antonio Torres, 81 anos, 18 livros publicados, nascido na aridez do sertão baiano. Quando lhe fiz a pergunta sobre a palavra mais querida, ele respondeu de pronto: “Mar”.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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