Não recordo muito bem quando comecei a escrever, mas no campo minado da memória a resposta que me resta é de que foi quase ao mesmo em que comecei a ler. A palavra viva passou a exercer sobre mim um fascínio quase místico, o mesmo fascínio que conheci observando os astros ou a vida dos animais. Letra a letra, som por som, fui percebendo na minha monótona infância que as palavras abriam janelas para outras dimensões além da que eu vivia. Elas eram capazes de encurtar distâncias, nomear objetos e lugares que certamente nunca conhecerei pessoalmente, além de devolver a vida às personagens que não faziam parte de meu mundo. Então, eu pedia a meu pai o jornal de domingo – ele certamente excluía as páginas policiais – e ali descobria palavras e coisas com a sua ajuda ou a de minha mãe. Quando eles não podiam me explicar, não ficavam aflitos por não saberem responder, mas me mandavam procurar no dicionário escolar ou nos volumes da Enciclopédia do Estudante guardados num móvel de jacarandá. Esse oratório se tornou a minha arca particular, lugar onde eu procurava pelas coisas valiosas da casa. Além da enciclopédia, minha mãe costumava guardar o doce de jenipapo na parte mais alta – me obrigando a escalar a peça na sua ausência para pegar as bolinhas açucaradas.
A etimologia da palavra “palavra” – do latim parábola, que por sua vez vem do grego parabolé e significa comparação – tem relação com a sua capacidade de capturar a vida em algo. Esse mistério de tentar resumir a essência das coisas em palavras – maximizada pela descoberta da leitura e da escrita – teve em mim um efeito encantatório. A partir daí não poderia viver desacompanhado do interesse por elas. Decidi não mais me separar de livros, revistas, de qualquer coisa que as continha. Poderiam ser as bulas de remédio, ou as folhas de jornais úmidas que embrulhavam os ramos verdes de coentro, e mesmo as mensagens escritas nos muros do bairro.
Vez ou outra, na literatura, me vi diante deste mesmo fascínio exercido pela palavra, não apenas quando se tratava das escolhas textuais dos autores, mas ao ver sua existência ligada à vital capacidade de nos comunicarmos. Como o que ocorreria em um mundo sob o risco de perdê-la, por exemplo. Em Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, segue-se como sequela da epidemia de insônia que acometeu os habitantes de Macondo o esquecimento do nome das coisas. Aureliano encontra uma forma de se defender das “evasões da memória”. Um dia, procurando a pequena bigorna que utilizava para laminar metais, se deu conta de que não lembrava mais do nome do objeto. O pai, José Arcádio, recorda, e para não esquecer, Aureliano o escreve num pedaço de papel para colar no objeto. Logo depois ele percebe que não lembrava de quase todos os nomes dos objetos de seu laboratório e pôs-se a fazer o mesmo. Assim passou aos objetos da casa – mesa, cadeira, cama, panela – e aos animais e às plantas da casa – vaca, porco, taioba, bananeira. Percebendo que poderia se esquecer também da utilidade das coisas, passou a escrever letreiros dizendo qual a finalidade de cada uma delas. O da vaca dizia o seguinte: “Esta é a vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e o leite é preciso ferver para misturá-lo com café e fazer o café com leite”. O medo de esquecer o leva a fixar um cartaz com o nome da cidade, “Macondo”, e outro na rua principal, para manter relativa ordem sobre seus habitantes, “Deus existe”.
Anos mais tarde, ao ler os ensaios contidos em Estar vivo, de Tim Ingold, descobri que os Koyukon, indígenas da região entre os rios Koyuk e Yukon, no Alasca, nomeiam os animais a partir de sua ação no mundo. O movimento dos seres, isto é, sua vida, é o que importa para designá-los. Para tanto é preciso observá-los e capturar a sua essência. O nome do pernilongo poderia ser traduzido por “pica” – do verbo picar – enquanto o da larva da mosca seria “venha à vida” – uma referência à metamorfose que sofreria para se tornar uma mosca adulta. Uma borboleta é chamada de “tremula aqui e ali” e a espécie de mariposa que se alimenta de tecidos é chamada de “come roupas”. Há uma certa arbitrariedade na nomenclatura, sendo que o mais importante é o aspecto relevante da narrativa do encontro entre homem e animal. Assim, poderíamos dizer que a palavra, o nome que lhe é dado, está contido na sua própria existência: o animal é o que faz. Para os Koyukon, a classe de palavra capaz de carregar melhor os significados são os verbos, porque neles estão o movimento de tudo.
E a palavra deve ser o que diz. Ela captura em si um sentimento, uma história, a origem de um objeto ou a ação de um ser sobre o mundo. Nela deve estar contida a vida das coisas e dos seres. Ou seja, elas não são apenas um adorno que embeleza algo com o objetivo de enganar ou de enfeitiçar quem a encontra. A palavra é o elo entre a nossa consciência e o entorno, e é assim que codifica e decodifica o mundo à nossa volta. Ela deve antes se mostrar plena, e é assim que devemos vivê-la na leitura e na escrita.