🔓 De um tudo (final)

A cada treta do mundo aqui fora corresponde uma série de vídeos que ensinam alguma coisa no universo paralelo do YouTube
Ilustração: Thiago Lucas
14/09/2022

É claro que a miríade de coisas que podemos procurar no YouTube não se divide em apenas três partes, como esta série de textos; e nem se resume a três objetos ou soluções, como aprender a desligar um rádio-relógio mequetrefe, retirar um alarme de loja vindo na roupa por engano ou uma técnica de pintar cadeira, como mostrarei aqui. Há muito mais por lá, o infinito. A cada treta do mundo aqui fora corresponde uma série de vídeos que ensinam alguma coisa naquele universo paralelo. Vamos a outro dos meus problemas práticos com solução interessante.

Tudo começa no lixo
Resolvi descer até o segundo piso do estacionamento do prédio para levar um pedaço grande de papelão. É que lá tem um projeto de reciclagem bem legal, então era muito mais civilizado fazer isso. Só que, ao chegar perto da caçamba dedicada aos recicláveis, dei de cara com uma cadeira em bom estado, dessas de metal, tubulares, com assento em corino bege, paradinha ali. Parecia uma obra de arte, uma instalação. Olhei, olhei, dei aquela reparada para ver se não era pegadinha, se não estavam me filmando. Claro que estavam. Todo canto das áreas comuns desse prédio tem câmera. Mas a cadeira parecia sem dono, abandonada perto do lixo, pronta para ser reciclada.

Para não passar por ladra, larápia moradora, resolvi mandar um zap para o zelador. Perguntei se aquela cadeira assim-assado, perto da caçamba da reciclagem, estava ali dando sopa, tinha dono, estava à espera de um resgate, sabe lá. O zelador, sempre muito atencioso e extremamente bem-informado, me disse que não, que a cadeira estava ali para reciclagem mesmo, fora descartada pelo dono ou pela dona, que eu nem quis saber quem era. Vesti a cara e perguntei, então, se eu poderia pegá-la. O “sim” do moço foi a minha felicidade clandestina. Era o que eu queria, precisava de mais uma cadeira, e, como sabe qualquer pessoa que tenha tentado mobiliar um barraco que seja, cadeira é coisa cara.

Catei o móvel, levei para o apê, limpei com um paninho úmido. Qual seria o problema dela? Por que a jogaram fora? Devia haver algo que meus olhos não alcançavam. Examinando o objeto na privacidade da minha saleta, observei apenas uns pontos oxidados, nada que uma lixa não ajeitasse. O assento estava firmemente preso, os pés, conservados. Era uma cadeira de modelo simples, magrela, reta. O negócio agora era lixar e pintar. E isso eu já sabia. Mas como? No pincel?

Meu curso de pintura
Daquela noite em diante, um dos meus problemas na vida era saber como recuperar uma cadeira metálica. Passei então a procurar no YouTube alguém que, por misericórdia, ensinasse a lixar e pintar à perfeição um móvel antes abandonado. E, claro, achei.

Entre as dezenas de vídeos que comecei a assistir, destacou-se um, mais profissional, oferecido por uma oficina real, provavelmente nos arredores de São Paulo. O tutorial era bem-feito, com boa luz, bem-preparado, e o “professor” ficava de pé, olhando nos olhos da gente, vestido com um macacão limpo, com a marca da oficina. Mostrava tudo de frente e, às vezes, ainda rolava a sofisticação de um corte de câmera, mostrando uma visão de outro ângulo.

O curso rápido de pintura de metal não mostrava exatamente uma cadeira. Talvez eu encontrasse algo mais específico, se tivesse procurado mais, mas o relativo profissionalismo daquele vídeo me ganhou. Dava a impressão de que aqueles caras sabiam do que estavam falando, dominavam o que estavam fazendo. Me ensinaram qual lixa comprar, qual primer usar, qual tinta preferir e tal e coisa. Tudo demonstrado com pedaços de metal. Em alguns minutos, me empoderei. Tive a sensação de que falaria sobre pintura com qualquer arquiteto ou engenheiro que visse pela frente, pintor ou pedreiro. Na loja, ao comprar meu material, teria muito mais segurança e seria mais respeitada.

Fiz minha listinha, fui Ă  loja especializada, me dirigi Ă  seção devida e pronto. Achei as lixas, encontrei o primer (bem que ele avisou que era caro…) e demorei a escolher a tinta spray, mais pela variedade incĂ´moda de cores e acabamentos do que por outra coisa. Comprar tinta Ă© lindo, eu já havia experimentado. Tinta spray ainda dá na gente um quĂŞ de pichador, grafiteiro, artista de rua. É chique. Zanzei por aquelas prateleiras todas atĂ© me decidir por um azul profundo. Chacoalhei a lata, ouvi a bolinha lá dentro garantindo a fluidez da tinta, fui para casa feliz.

Na prática
Transportei a cadeira para o jardim da casa dos meus pais. Lá eu teria paz e ambiente para errar à vontade, sem grandes prejuízos. Pus um grande plástico sobre a grama e passei a lixar, lixar, lixar.

Não era assim tão fácil quanto o professor no vídeo fazia parecer. No início, a lixa não fazia nem cócega no metal oxidado. Mas, depois que peguei o jeito, aprendi a força adequada, comecei a arranhar bem os lugares que precisavam ser recuperados. Após isso e algum cansaço nos braços, passei ao primer, uma espécie de pré-tinta, de cor clara (branco, no meu caso), que me daria ainda um fundo uniforme onde fixar meu azul.

Depois de usar o primer e notar que a maior parte dele ia pelos ares, esperei secar tudo, diminuir aquele cheiro forte que respirei por alguns minutos, e abri a lata com minha cor escolhida. Não foi muito diferente. Ia mais azul para fora do que para cima das magrelas hastes da cadeirinha resgatada. Mesmo assim, meu móvel ia se cobrindo de um azul quase estável, embora de vez em quando um fio de tinta mais grosso escorresse, borrando o esmalte e me deixando decepcionada.

Pintei a cadeira. Deu certo trabalho, aliás, proteger o assento com um plástico, evitando pintar o corino com uma tinta que certamente nĂŁo fora feita para ele. É claro que essa operação nĂŁo ficou perfeita, mas deu para manter bem o assento bege, sem furos ou puĂ­dos, enquanto os pĂ©s e o encosto da cadeirinha iam ganhando outra vibração. Consegui. Ganhei uma cadeira azul. E havia ainda a vantagem de ela ser, agora, disfarçada, isto Ă©, quase irreconhecĂ­vel para o dono antigo. A joia que eu tinha agora… eu nĂŁo devolveria a ninguĂ©m. Sorry.

A tinta secou, passei outro pano, corrigi uma falha aqui e outra ali, o fundo branco meio aparecendo num canto, ajeitei tudo e levei a cadeira “nova” para o apê. Ninguém soube de nada. O zelador, um dia, quis saber. Tudo certo. Outro tipo de reciclagem, afinal. E eu continuei fã da oficina ou da serralheria, sei lá, que me ofereceu aquele curso rápido pelo YouTube.

O resultado, verdade seja dita, Ă© que a pintura do professor do vĂ­deo ficou bem melhor do que a minha, mas… talvez eu merecesse aĂ­ uma nota 8 na prova prática final. Quem se senta na minha cadeirinha nĂŁo percebe nada e ainda diz: que azul bonito! Onde vocĂŞ comprou?

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

Rascunho