Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra.
João do Rio
Tenho sonhado com festas de santos. Outro dia, sem motivo aparente, comentei isso numa live. Como o tema escolhido para o papo não tocava em religião nem psicanálise, meu entrevistador, espertíssimo, logo redirecionou a conversa para o surrealismo espanhol, o cinema de invenção e a técnica de edição em Barravento, do Glauber. Ao final de mais de uma hora olhando, gesticulando e falando com a tela do celular, estava moído e não me recordava da confissão onírica do início. Não sei se isso acontece com todos, mas eu sinto que os eventos virtuais tiram muito mais nossa energia do que os presenciais. Talvez a explicação se dê pela maneira com que nos concentramos em um e noutro. Acho que nos presenciais os sentidos ficam mais soltos. E há sempre um pós que é continuidade, o acolhimento do público, uma esticada para um barzinho, um relaxamento das possíveis tensões. Em casa, fechamos o aplicativo e é o fim. Somos apenas nós e o cansaço. Vez ou outra, no entanto, pinta uma ligação de um amigo para dar o retorno, repassar suas impressões. Eu nem tinha tirado uma cerveja da geladeira quando o telefone chamou.
“É sério aquela parada?”
“Que parada?”
“A da festa.”
“Ah, sim. Aconteceu mesmo. Mais de uma vez.”
“Estranho…”
“Que que tem de estranho?”
“É que eu jamais sonharia com uma festa. Pra mim, a pandemia é uma merda, mas, por outro lado, estou me cuidando mais.”
“Bola, você SEMPRE foi hipocondríaco. Como pode estar melhor com essa situação?”
“Justamente. Meu médico falou que se eu não fizesse exercício, não perdesse peso, babau.”
“E há quanto tempo ele fala isso?”
“Uns dez anos.”
“O que mudou agora? Você se matriculou numa academia? Tá subindo e descendo a escadaria do teu prédio?”
“Tá maluco? Eu comecei a fazer caminhada. Com a porra do lockdown, não esquento mais com trombadinha, tumulto, empurrão, poluição sonora. Saio do Dois de Julho, desço a Avenida Sete, sigo o Passeio Público, vou até o Campo Grande e, lá, emendo umas três volta na praça. Se estiver animado, faço quatro ou cinco.”
Enquanto ele falava, imaginei toda a cena, o Bola de camiseta e bermuda pretas, óculos escuros na cara, o all star cano curto com solados desgastados, fones no ouvido tocando Barbárie da Modus Operandi, seus passos curtos e rápidos pela cidade solar: o retrato de um conquistador destemido a tomar posse do que sonhou ser sempre seu. Porém, agora, sem nenhum obstáculo, nenhuma disputa ou resistência.
Diferente do meu amigo, não tenho saído do apartamento nem para fazer exercício físico. Vivo o mundo exterior exclusivamente pela varanda. É dela que vejo uma mãe seguir em direção ao ponto de ônibus no meio da manhã, mãos dadas com o filho, que a acompanha trôpego e segura, com um dos bracinhos, um chapéu de papel no topo da cabeça, temeroso que ele voe ou caia.
Quando eu era criança, minha tia ensinou a mim e a minha irmã a fazer chapéus napoleônicos de simples folhas de papel. Nós púnhamos aquilo na cabeça e, em fila, cantávamos: “…se não marchar direito…” e achávamos graça do desespero para socorrer a bandeira nacional. Até que uma vizinha, uma menina um pouco mais velha do que nós, mas muito conhecedora dos mistérios do universo infantil, explicou-nos que poderíamos transformar os chapéus em algo imensamente mais bonito e divertido. Foi então que, com poucas dobras a mais, deixamos de ter cabeças de papel para nos tornarmos donos de vistosos barcos. Enchemos de água o tanque de lavar roupas no quintal e passamos a brincar com o transporte náutico de bonecos e cargas que variavam entre tampinhas, gravetos e pequenas pedras. Um sopro forte poderia causar uma tempestade sem sobreviventes.
Quando começávamos a nos enfastiar do jogo, a generosa vizinha trouxe novas folhas e nos ensinou também como fabricar aviões. Nossa alegria foi ainda maior. Havia modelos diferentes de aeronaves. As que voavam rápido e percorriam grandes distâncias em linha reta. As que flutuavam com graça e davam piruetas. As que iam acima dos telhados de nossas casas e as que só se prestavam a voos rasos.
Atravessei toda a minha infância exercitando e aprimorando minha técnica de fabricar aviõezinhos. Lembro que meu único rival era um garoto chamado Nem. As criações dele tinham um desenho único. Nós conferíamos o sentido do vento, contávamos até três e lançávamos nossos protótipos ao céu. O Nem sempre me vencia, seus aviões aterrissando um ou dois segundos depois dos meus.
Onde estará meu amigo Nem nos dias de hoje? Permanecerá vivo? Ou terá se tornado vítima daqueles que marcham tal e qual o Antenor do conto O homem da cabeça de papelão, do João do Rio, após visitar o relojoeiro? Seus possíveis algozes, inequívocos representantes de um exército de cabeças de papel que, mesmo sem “marchar direito”, mesmo sem cumprir plenamente com suas responsabilidades cívicas, continuam livres dentro e fora dos quartéis. Miseravelmente livres, sem se dobrarem à triste e desoladora realidade dos 450 mil mortos pela Covid-19 no Brasil de hoje; sem se dobrarem ao fato de que, com o passar dos dias, cada vez menos crianças aprenderão a olhar para o céu em busca de um rasgo de beleza, acreditando que o ornamento patético a cobrir seus crânios, enquanto suas mães seguem em direção a um ponto de ônibus qualquer, oferecerá alguma segurança.