🔓 Cronista à janela

Nos lares, embora machucada, a vida continua; é preciso vencer os dias, fazer a pequena revolução que é não perecer
Ilustração: Denise Gonçalves
02/06/2021

Uma das perguntas que mais tenho ouvido nas entrevistas sobre o novo livro é: como fica o cronista em tempos de pandemia?

A questão procede. Sobretudo para aqueles que costumam praticar o doce esporte da flânerie, a impossibilidade de se andar despreocupadamente pelas ruas impõe um revés que, além de anímico, é criativo.

Imaginemos Charles Baudelaire sem poder esticar as pernas pelos bulevares parisienses ou João do Rio recolhido à sua casa na Avenida Meridional, atual Vieira Souto, longe das vielas e das tensões do Centro carioca.

Cito propositadamente os dois escritores. Tanto um quanto o outro exerceram, cada qual a seu modo, a arte de explorar o espaço urbano a partir de longos passeios. “Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito”, anotou o autor francês. Sob essa perspectiva, o cronista seria um indivíduo errante. Aquele que, estando fora de casa, sente-se em casa; que se põe no centro do mundo, mas permanecendo oculto.

O flâneur é quase sempre um ingênuo, dizia João do Rio. Detém-se “diante dos rolos”, do balão que sobe ao meio-dia no Castelo, das bandas de música que tocam nas praças, quer saber a história dos boleiros. Um eterno “convidado do sereno”.

Mas e se a rua virou um interdito?

Da varanda, observo as vilas da Álvaro Ramos. À esquerda, a mata que divide os bairros de Botafogo e Copacabana parece mais densa. Dois prédios altos se destacam na paisagem — são intrusos numa planície de construções baixas e tetos de telha. O Cristo Redentor está encoberto por nuvens esparsas, mas faz sol. Um vizinho escuta Roberto Carlos enquanto o zelador atravessa a garagem com a vassoura à mão. Ele hesita e para por um instante ao ver que um carro se aproxima. Há pouco, passou o vendedor de pamonha, deliciosa pamonha. Na sacada de uma das casas, a mulher recolhe as roupas que descansavam no varal.

A calmaria da manhã cobre com uma capa de normalidade o país que queima em UTIs, CTIs, CPIs. Dentro dos lares, embora machucada, a vida continua. Precisamos vencer os dias, fazer essa pequena revolução que é não perecer.

Penso nos colegas de ofício, meus contemporâneos, e concebo possibilidades. Antonio Prata explorando cada palmo do quintal com os filhos Olívia e Daniel. Luís Henrique Pellanda, à espreita, de olho nas duas gatas pretas. Tati Bernardi a mapear o quarto enquanto retoma o oxigênio. A praia de Iracema projetada nos vidros do apartamento de Socorro Acioli. Joaquim Ferreira dos Santos ouvindo canções antigas na vitrola. Leo Aversa defronte à TV que transmite o jogo do seu, nosso, Fluminense. Xico Sá espantado com a notícia do meteoro no céu do Ceará. Henrique Rodrigues cavoucando o riso possível num solo de tristezas. Edu Goldenberg a recordar histórias do pai. Ana Paula Lisboa e o espelho que reflete uma menina de roupas coloridas na Favela da Maré.

Talvez a imaginação seja mesmo a rua onde o cronista pode, por ora, caminhar.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho