Eu achava que ia fazer do mundo um lugar melhor
ao dar bom dia ao porteiro
tu achavas que ia fazer do mundo um lugar melhor
ao dar bom dia ao porteiro
ele achava que ia fazer do mundo um lugar
nós achávamos que íamos fazer
vós acháveis que
eles não
eles não achavam que iam fazer do mundo um lugar melhor
ao dar bom dia ao porteiro
porque eles são o porteiro
ali — do outro lado
— do balcão
que distantes os porteiros
eu achava que ia fazer do mundo um lugar melhor
ao dar bom dia ao porteiro
e depois comentar com amigos
na mesa do bar de cerveja artesanal
sobre a estupidez das pessoas que nunca dão bom dia ao porteiro
eu achava que podia me orgulhar de dar bom dia ao porteiro
como se esse gesto de civilidade
farelo de respeito
fosse o equivalente contemporâneo de impedir que uma guilhotina caia sobre um pescoço
eu nunca pensei que talvez o porteiro
não queira cumprimentar ninguém
talvez o porteiro ache um pé no saco quando eu passo na catraca
talvez o porteiro prefira ficar quieto lendo um livro
talvez seja o porteiro quem dá bom dia a mim
talvez depois o porteiro comente aos amigos na mesa de bar
que não suporta mais dar bom dia a gente chata
talvez o porteiro goste de silêncio
talvez o porteiro tenha uma vida interior muito mais rica do que a minha
e a cada um dos meus bons dias
um personagem de fantasia morra na cabeça do porteiro
talvez a guilhotina esteja em cima é do meu pescoço
mas a minha guilhotina com certeza é mais bonita
que a guilhotina do porteiro
a minha é exclusiva para pejota
acompanha um cartão de crédito bonito contactless
acompanha brindes que têm storytelling
acompanha um manual de mindfulness
acompanha um bonito saco de algodão egípcio
para guardar a cabeça
eu achava que podia salvar o mundo
com uma alimentação vegana
tu achavas que podia salvar o mundo
ao ser um vegetariano que come peixe
ele achava que podia salvar o mundo
ao ser um carnívoro de carne branca
nós achávamos que podíamos
ser onívoros que compram de produtores locais
vós achais que podeis
comer saudável
para cagar regras saudáveis
eu achava que todo mundo podia trabalhar com o que ama
menos o porteiro
ninguém ama a portaria
o porteiro ficava feliz com a sexta-feira
o porteiro me perguntava: coisa boa a sexta-feira, né?
eu também ficava feliz com a sexta-feira
ninguém ama nada quarenta e oito horas por semana
por quarenta e nove anos
eu dava boa noite para o porteiro
mas ele dizia
espera aí
e a gente caminhava junto até a parada de ônibus