Ele riu. NĂŁo um riso aberto, um riso de lado, de escárnio. Naquele riso, li todas as minhas inseguranças, meus medos. Naquele ridĂculo e rápido momento, minha autoestima morreu. Essa cena repassa na minha cabeça toda hora como um exemplo do homem que evito.
Tenho muitas lembranças assim, em cenas, em sensações não ditas, pela metade, inconclusivas.
Recentemente vi a sĂ©rie After life, com o Ricky Gervais (Netflix). O humorista Ă© um ativista do ateĂsmo, vida selvagem, vegetarianismo e de direitos humanos. A premissa da sĂ©rie Ă© a de acompanhar o personagem principal (Gervais) enquanto ele sofre com e, teoricamente, supera o luto. Tinha tudo para ser interessante. No entanto, Ă© uma sĂ©rie gordofĂłbica e machista. O personagem de Gervais Ă© o macho tĂłxico em essĂŞncia, mascarado de sensĂvel, amoroso e sofredor. Ou seja, o pior tipo. É o tĂpico esquerdomacho que se julga mais inteligente do que o restante da humanidade. Humanidade que lhe falta, aliás. Sim, sei que Ă© um personagem de ficção. Entretanto, quando uma figura pĂşblica conhecida por ser de esquerda e estar, teoricamente, do mesmo lado da trincheira que a gente, escreve, atua e dirige um personagem tĂŁo tĂłxico, percebemos o quĂŁo enraizado na sociedade está o abuso emocional que sofremos todo santo dia. O problema nĂŁo Ă© a toxicidade do personagem. É Ăłbvia, por exemplo, a crĂtica Ă misoginia caricata do personagem do psiquiatra. O problema Ă© que o personagem do Gervais Ă© vestido com o manto da superação, do “bom coração”.
Uns anos atrás, antes da pandemia, eu estava sentada em um ônibus em um lugar péssimo. O sol batia na minha cara e eu estava derretendo. Em uma parada, como é normal, entrou e saiu um monte de gente. Entrou um homem negro e sentou do meu lado. Mas, na mesma hora, vagou uma cadeira na sombra. Levantei e mudei de lugar. Ele me olhou com uma cara triste, cansada, de quem perdeu a luta. Ele achou, acredito, que mudei de lugar por causa dele, por causa da cor de seu corpo. Quis falar algo, fazer um gesto sobre o sol, mas uma enxurrada de pessoas ficou no caminho. Nunca me esqueci da cena. De vez em quando sonho com ela e acordo, coração batendo forte, pânico, suor frio, ânsia de vômito. Posso ser muitas coisas nessa vida, mas não sou racista, homofóbica, transfóbica, etc. Ou seja, posso ser muitas coisas nessa vida, mas não sou escrota.
Essa cena de vez em quando me volta. Volta como um alerta de como nosso estar no mundo é frágil. Volta como um pesadelo.
Fico me perguntando quantas vezes não fui eu a mulher cansada da luta e interpretei algo que não estava lá.
Entristece saber que o mais provável é que seja racismo, machismo, homofobia, transfobia, gordofobia, etc. Claro, um ou outro caso será só uma pessoa fugindo do sol, mas essas histórias são as exceções.
Enfrentamos, todo dia, de todos os lados, de todas as fontes, de onde menos esperamos, o preconceito, o Ăłdio, a estupidez humana.
Mesmo quando nĂŁo somos pessoas horrĂveis, mesmo quando nĂŁo temos a menor intenção, perpetuamos, ainda que involuntariamente, um modo de vida opressor, injusto e absurdo.
E entĂŁo lembro dos olhos baixos, exaustos, do homem no Ă´nibus.