🔓 Crime e castigo

Vemos Raskólnikov como nosso duplo, e torcemos para que ele dissimule seu crime e consiga safar-se da perseguição da polícia
Ilustração: Mello
01/12/2022

1.
Essa novela de Dostoiévski é a mais prestigiada por leitores não essencialmente literários: leem-na juristas, penalistas, psicanalistas, psicólogos, sociólogos, políticos, legisladores e, ainda, teólogos, filósofos, crentes e ateus. Crime e castigo passou ao uso do público e, não raro, transforma-se em campo de batalha ideológico. Seu conteúdo literário é poucas vezes trazido à discussão, e quase sempre restrita ao meio acadêmico.

2.
Novela, disse eu, e novela é, apesar de suas centenas de páginas: um conflito forte e dominante, uma personagem central que monopoliza o enredo, a convergência das forças dramáticas para o final. A partir desse conceito, talvez seja a maior novela já escrita. Para um ficcionista amador, é catástrofe à vista, sustentar essa estrutura sem que haja perda de interesse do leitor. Difícil também é fazer com que a situação crítica inicial — o assassinato de duas pessoas — produza todos os efeitos sem que haja reiterações de momentos capitais e seu consequente tédio. Por mais que sejam criadas situações críticas subsidiárias dessa primeira, é preciso enquadrá-las e resolvê-las dentro do contexto da novela: o inquérito policial, que discute a relação entre Estado e indivíduo; a redenção pelo amor, o que se dá pela intervenção da compassiva Sônia; o intrometer-se de Raskólnikov no casamento desastroso da irmã, só para citar as mais evidentes, são pequenas tramas que, se guardam certa independência em relação à história, não devem perder sua relação com ela.

3.
Como todos sabemos, o jovem Raskólnikov, em plena Rússia imperial, é o autor de um duplo homicídio. E o enredo é o caminho percorrido por esse jovem até sua condenação a sete anos de cadeia na Sibéria. Bem simples, mas o que importa numa boa novela são as circunstâncias; e o tratamento dessas circunstâncias, que podem ser complexas, é que distinguem um ficcionista profissional. Aqui eu penso, antes de tudo, na competência para controlar o conflito de Crime e castigo, o qual pode ser de enunciado simples: a clássica dicotomia entre a virtude e a transgressão, que está presente em tantas outras narrativas, como Romeu e Julieta, A nova Heloísa, Os miseráveis, Sargento Getúlio [incluindo-se, ainda, a maioria das telenovelas brasileiras]. Haverá outros conflitos em Crime e castigo, concomitantes com esse — por exemplo: transgressão e culpa — que o leitor pode discernir de acordo com seu próprio quadro de valores e suas percepções de mundo.

4.
Já se disse, e concordo, que um ficcionista escreve seu romance para agudizar um conflito, consciente ou inconsciente, que o atormenta por toda a vida. As histórias podem variar, mas o conflito voltará no seguinte romance, e depois, no outro. Por isso é que temos a impressão de que um mesmo autor escreve sempre o mesmo livro. No caso de Dostoiévski, é impossível psicanalisá-lo post mortem, mas — e aqui tenho pouco espaço e muita ocupação para esse estudo, que deixo aos especialistas — é possível constatar que em suas outras novelas a díade de opostos virtude x pecado está presente. Considere-se Os irmãos Karamázov como ponto de partida. A aventura intelectual será compensadora.

5.
Apesar de vivermos numa época que substituiu a virtude pela solidariedade, ou, vocábulo mais na moda, empatia, e transformou arrependimento pelo pecado em sentimento de culpa, temos de reconhecer que os conflitos de Crime e castigo assombram as existências de todos nós, ainda que os espantemos de nossas vistas. Dostoiévski foi bem cortante no enunciado do título, em atenção ao pensamento da época — Freud ainda andava de calças curtas: havia crime, e o castigo seria sua consequência natural, e castigo de prisão ou, até, morte. O decorrer do enredo, porém, mostra que o pior castigo não foram os anos na Sibéria, mas a consciência variável da personagem central acerca de si mesmo, que tem seu símile no igualmente jovem Hamlet. Se Rodion lamenta o imobilizante muito pensar: “como muito penso, nada faço”, já o príncipe da Dinamarca indaga-se: “Sempre nos perguntamos: e o que nos obriga a sofrer, em vez de correr para buscar alívio?” e conclui: “nossa coragem torna-se fraca com tantos pensamentos”. Nesse grupo dos duvidosos de tanto pensar inclua-se o nosso Bentinho, num diálogo com Escobar: “Palavra puxa palavra, falei outras dúvidas. Eu era então um poço delas; coaxavam dentro de mim, como verdadeiras rãs, a ponto de me tirarem o sono algumas vezes”. Observe-se que, mais do que dúvidas morais, são dúvidas metafísicas, as mais cruéis e, ontologicamente, duradouras.

6.
É a permanente dúvida que faz com que Rodion Raskólnikov, um moço comum, com a mente turbulenta, entregue-se a errâncias, assassinatos, autoindulgências e inesperadas ações compassivas. Sua alma peregrina por um vórtice de delírios de humilhações e soberba; ora culpa-se pelo que fez; ora perdoa-se, pois, às pessoas superiores [tais como ele se acha] tudo é permitido. É tão grande seu drama interior que a luta para não ser descoberto torna-se o mal menor. Se o encarceramento é um futuro a ser repelido, ele o reserva para o alívio final. Seria um desastre manter a atenção apenas com esses ires-e-vires; mas aqui estamos perante um verdadeiro escritor, que sabe ordenar e dosar quando e onde esse drama deve aparecer; se muito frequente, torna-se trivial e já não impressiona a ninguém, como o vulcão Kilauea, que se tornou atração turística; se muito raro, o leitor esquece qual o foco da novela que está lendo.

7.
É de perguntar-se a razão da permanência centenária de obra tão cheia de amarguras. Há as razões extraliterárias, como o fascínio pelo crime, que está dentro de nossa interioridade mais profunda e que cada cabeça vive a seu jeito, mas é raro ver outro exemplo do quanto essas razões se articulam com a excelência de uma obra que nos convence desde o início. Se sua situação crítica inicial se resolve — os assassinatos devidamente punidos —, o conflito permanece como repositório subterrâneo da Humanidade. Enquanto houver quem se arrependa de algo, Crime e castigo sobreviverá. Ainda que horrorizados com seus crimes, vemos Raskólnikov como nosso duplo, e torcemos para que ele dissimule seu crime e consiga safar-se da perseguição da polícia. Convencido por sua namorada, sim, ele se entrega, ele é condenado, mas nós, os leitores, desejaríamos outro final, que criasse nova situação crítica, aumentando para mil páginas a novela. Pela prosa encantatória, pelo arrepio do abismo a que nos leva e, mais, pela consternação que nos causa o destino de Raskólnikov e pelo fim-sem-fim dessa história contada por um verdadeiro artista, Crime e castigo merece ir para a mochila.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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