Voltar para casa já nĂŁo Ă© isso: voltar. De fato, parece cada vez mais longe desse sentido de retorno. NĂŁo foram sĂł os rostos que foram se modificando; a mobĂlia da minha casa que Ă© a casa da mĂŁe que ficou com o pai tambĂ©m foi sendo modificada. É uma mistura estranha de objetos que ela comprou e novos ares em forma de um sofá, uma cadeira, um jogo de copos, que ela nunca escolheria. Uma forma de pegar o tempo com as mĂŁos Ă© essa: coisas desencontradas em casa, objetos que nunca teriam permissĂŁo para entrar na casa da mĂŁe, hoje moram aqui, de onde escrevo enquanto olho para alguns desses grĂŁos de tempo, de espaço, de lacuna preenchida com outro vazio que Ă© o da ausĂŞncia.
Minha mãe colecionou livros e a maioria deles, ela leu. Eu e ela fomos, dentro desta casa, as pessoas mais interessadas em ler. Talvez, só ela entendesse que estou, realmente, trabalhando quando bato estas teclas, que gostaria de não ser incomodada, que não vou atender à campainha, que não quero sair porque prefiro ficar aqui, escrevendo. Ela me deixaria quase que nesse estado que, para os outros, é o abandono completo. É o não checar e verificar se estou respirando, se quero café, se quero sair, espairecer faz bem enquanto respiro e engulo os ácaros e a poeira acumulada dentro do que não é tocado na rotina.
E que nĂŁo pareça ingratidĂŁo. É tĂŁo bom ser interrompida com um cafĂ© fresco, com um olhar que veio ter certeza de que tudo está em ordem, que nĂŁo estou chorando de saudade da mĂŁe, que o vazio ecoante da casa nĂŁo me perturba o sono e a sesta porque faz calor e já nĂŁo Ă© possĂvel fazer mais nada alĂ©m de dormir, abraçada ao langor e ao ar quente, lento e pesado que embala o depois do almoço.
Quando estive nesta casa, uma outra vez, ajudei meu pai a recuperar os livros da mĂŁe e alguns meus que ainda flutuam por aqui. Organizamos a estante da sala e guardei lá os tĂtulos que ela leu.
NĂŁo consigo evitar sentir raiva de mim mesma pelo meu atrasado reconhecimento de terreno. Enquanto eu me ocupava de contestar a mĂŁe, brigar com ela e rejeitar toda e qualquer interferĂŞncia dela na minha vida, ela lia Clarice Lispector, AristĂłteles e PlatĂŁo. AntĂłnio Lobo Antunes, Fernando Pessoa, Eduardo Galeano e GuimarĂŁes Rosa.
Mas, talvez, a descoberta mais importante da minha estadia nesta casa que é ainda maior porque não tem a mãe dentro – e a mãe ausente é uma coisa enorme – seja um livro do Darcy Ribeiro que encontrei entre tantos outros livros. Nele ela anotava observações, destacava trechos em amarelo, estudava aquelas linhas como quem quer sorver algo precioso.
Minha mĂŁe viu de perto a ditadura. Tinha a sua revolta e senso anárquico em dia. Ouvia, e fazia as filhas ouvirem, todo Chico, Milton, Caetano e toda Nara, Elis, Gal e Betânia possĂveis. O que ela nĂŁo viu de perto foi a população desmemoriada que atravessa este meu tempo que já nĂŁo Ă© o dela. População que despreza a democracia conquistada com tanta reivindicação, Ă s custas de tanta vida. NĂŁo, isso ela nĂŁo viu. Vejo por ela e passo os olhos no livro do Darcy Ribeiro. PoderĂamos trocar ideias, mas nĂŁo podemos. PoderĂamos nos fortalecer nas colocações valiosas do ensaĂsta e antropĂłlogo. Talvez o que mais me faça falta seja a cabeça dela. Dentro daquela mente curiosa estava uma disposição constante para o que mais se extingue hoje: o debate.
Talvez a mĂŁe tivesse um plano de conscientizar as filhas para a polĂtica. Mas Ă© difĂcil saber, uma vez que ela ficou longe dos sermões. Em vez disso, uma rotina rica em mĂşsica, livros, conversa, a possibilidade de mudar de opiniĂŁo, mesmo quando havia certeza dela.
Havia qualquer coisa de solitário na mãe.
Lembro-me do escritor de livros de Geografia que ela recebeu aqui em casa. Era como se recebêssemos um Deus. Das lembranças daquela tarde longa que passou aqui o David Márcio, ficou a dos olhos brilhantes da mãe, conversando com ele por tantas horas que o sol se pôs.
Hoje, ela já não teria esse tipo de solidão. Eu estaria com ela. Em O povo brasileiro ela grifou na página 173: “desde a chegada do primeiro negro, até hoje, eles estão na luta para fugir da inferioridade que lhes foi imposta originalmente, e que é mantida através de toda sorte de opressão na condição de trabalhadores comuns, iguais aos outros, ou de cidadãos com os mesmos direitos”.
Ela deixa, assim, minha certeza de que nunca questionaria o racismo estrutural e que, sem vacilos, estaria sempre no caminho justo da HistĂłria. Vai, mĂŁe, ser gauche.