Apesar de, há algum prazer em se estar trancado. Uma sensação próxima à emoção de Anne Frank ao ouvir os acordes de uma sinfônica após atravessar um longo tempo escondida dos nazistas. É como me sinto nos vinte minutos que tomo banho de sol na varanda pela manhã em vez de enfrentar a saga cotidiana do transporte coletivo para ir ao trabalho. O famoso lagartear lobatiano descrito no Sítio do Pica-pau Amarelo. A conquista de se ficar em completo abandono, mesmo que por escassos vinte minutos, apenas estudando o movimento das nuvens e sentindo um calor gostoso na pele. Essa possibilidade louca de fazer da nossa ilha um paraíso particular. E acreditar. Embora seja inverno.
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Apesar de, elas chegaram de surdina. Não houve telefonema prévio, interfone ou toque de campainha. Vieram sem cerimônia. Como se nos conhecessem há anos. E desconfiassem que precisávamos delas, ansiávamos por elas, presunçosas e insuportáveis que são. Um casal de rolinhas. Suas asas tinham a cor de canela. Pousaram no varal da área de serviço e, na tranquilidade do amor feliz, ficaram. Depois, com a mesma sem-cerimônia, silenciosamente bateram as asas, uma após a outra, e partiram.
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Apesar de, às vezes escrevemos sem o impulso do mistério. Basta abrir a porta e lá está, claro e tangível. Levantamos da cama já imaginando a caneca de café quentinho e a mesa posta com frutas, pão, geleia e queijo. Com um pouco mais de disposição, ovos fritos na manteiga, temperados com sal e ervas. E, evidentemente, música. Algo entre Liszt, Dead Can Dance e Virgínia Rodrigues. Manhãs claras assim têm sido raras neste inverno. Esqueçamos o tosco chavão de que aqui só há duas estações, uma variação de calor com ou sem chuva. Uma manhã atípica para um inverno atípico.
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Apesar de, vibra-se por muito ou quase nada. O porteiro do prédio coloca no elevador o pacote, nós o carregamos para dentro, tiramos a embalagem e descobrimos justamente a edição em capa dura do Xenofonte com o Ditos e feitos memoráveis de Sócrates na tradução de Jaime Bruna. Ou a biografia do Noll, João aos pedaços, escrita por Flávio Ilha. Ou a coletânea de quadrinhos Perigosas sapatas, da Alisson Bechdel. Ou.
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Apesar de, amigos se fazem presentes. Emily acaba de me dizer tchau após batermos um longo papo. Ela resolveu falar toda a verdade para o professor uruguaio. Pensou ser melhor dar logo um fim àquela farsa. Talvez houvesse tempo do admirador cancelar as passagens. O chato é que começava a gostar dele. Trocavam mensagens todos os dias. Mal abria os olhos, ao acordar, e corria para conferir se Hernán lhe enviara algo. Então, provavelmente pareceu natural quando o convidou para uma chamada de voz. Imaginou o susto que provocaria ao falar e o professor perceber que ela não era um homem. Uma voz ligeiramente rouca, mas inequivocamente feminina. Será que Hernán encerraria a chamada antes de ela conseguir se explicar? Para seu espanto, o professor não só escutou sua justificativa, mas achou engraçada a situação, reafirmando seu desejo de virem a se encontrar pessoalmente. “Me interesan todos los géneros humanos”, foram suas palavras. Desse modo, o encanto de Emily por Hernán redobrou-se. Ela passou a acreditar que haveria uma chance. Mínima, a bem da verdade. Todavia, um Lytton Strachey seria capaz de apimentar sua vida.
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Lembremos que mesmo nas noites mais escuras as sombras gradualmente se dissipam e somos novamente capazes de enxergar um tênue facho de luz a revelar a existência de um caminho.