(13/12/20)
Esta coluna serve para que eu reparta com os leitores as graças e desgraças de escrever. A ideia é que ela seja mais ou menos como um teatro todo de vidro, em que se possa ver a coxia, os bastidores, os camarins e, talvez, até os banheiros.
EntĂŁo lhes conto que, por esses dias, estou fazendo algo doloroso: decidindo quais textos entrarĂŁo ou nĂŁo no Diário do Bolso 4 – 666 dias com a besta. Para quem nĂŁo sabe (ou seja, quase todo mundo), escrevo, no Facebook e no Instagram, um falso diário do presidente Bolsonaro. Já sĂŁo mais de 350 textos. E, de vez em quando, publico uma coletânea atravĂ©s de um financiamento coletivo (mercham explĂcito: https://www.catarse.me/diariodobolso4).
Dito isso, vamos ao que realmente interessa: como definir o que vai ou não para a coletânea.
Fazer essa seleção é um tanto triste. E por dois motivos:
Primeiro, porque cada texto é um pouco como um filho. Você o criou, colocou-o no mundo e gostaria que ele entrasse num livro. Mas não há lugar para todos. Há que fazer uma escolha de Sofia.
Depois, porque Ă s vezes (muitas vezes) vocĂŞ descobre que o texto que fez com tanto carinho nĂŁo era tĂŁo bom quanto vocĂŞ pensava. E isso dĂłi.
No meu caso, mais da metade dos textos produzidos ficará fora do livro. A questão é como separar o joio do trigo (nada como uma metáfora inédita!).
Infelizmente, não há segredo nem fórmula. Cada autor inventa suas próprias regras ou desculpas para escolher este ou aquele texto. As minhas são as seguintes:
1) NĂŁo se empolgue com as palmas
Para mim, não importa se o texto teve uma boa repercussão no momento da sua primeira publicação. Mesmo que uma crônica tenha tido mais de mil compartilhamentos no Face, isso não lhe assegura um lugar na seleção final. A boa acolhida pode ter acontecido menos pela qualidade do texto do que pelo interesse momentâneo do público no tema. E isso pode sumir em dias.
Por exemplo, o Decotelli, ministro da Educação por algumas horas, chegou a ser um assunto importante no paĂs. Mas hoje ninguĂ©m se lembra dele. Assim, o texto sobre seu falso currĂculo, que fez certo sucesso na Ă©poca, acabou nĂŁo entrando no livro.
2) O que Ă© importante Ă© importante
Esta frase pouco inteligente serve para dizer que alguns assuntos são incontornáveis. É o caso da prisão de Queiroz. Ela tem uma importância gigantesca. Ainda mais porque ele estava na casa do advogado do presidente. E não se pode esquecer que “Cadê o Queiroz?” virou um bordão nacional.
Outros fatos incontornáveis sĂŁo a marca de cem mil mortos por covid, os 89 mil na conta da Michelle, a cueca cheia de dinheiro do vice-lĂder do governo e a raspadinha do Flavinho. Se o livro quer ser uma crĂ´nica sobre o seu tempo, nĂŁo pode deixar estes assuntos de fora. E, se o texto feito na Ă©poca nĂŁo está muito bom, há que refazĂŞ-lo. Aliás, esta Ă© uma boa regra: nĂŁo precisamos ser fiĂ©is Ă versĂŁo original. A infidelidade vale a pena.
3) NĂŁo se fica indiferente ao diferente
Eis mais uma frase que revela minha alma óbvia e simplória. Mas tudo bem, pelo menos ela serve de mote para que eu diga que textos com uma estética diferente, inesperada, ganham um ponto extra na média final e têm mais chance de ficar acima da nota de corte.
Geralmente, uma coletânea traz textos quase sempre do mesmo tamanho e jeito. Assim, uma crônica com um formato menos usual quebra a monotonia, surpreende o leitor.
Por conta disso, para este livro escolhi textos com formatos variados, como uma bula de remédio, um fluxo de pensamento, uma entrevista, uma nova letra para o “Pra frente, Brasil” (que virou “Pra cova, Brasil”), uma versão bolsonarista do Pai Nosso e uma carta para o Trump (oferecendo-lhe emprego por aqui).
4) “Ops, essa eu não conhecia!”
Um tipo de texto que consegue passar pela peneira Ă© aquele que traz uma revelação ao leitor, seja ela uma análise inesperada ou um fato pouco comentado. É difĂcil trazer algo nĂŁo contado pelos jornais. Mas nĂŁo impossĂvel. Dois exemplos: neste quarto volume há uma crĂ´nica que faz uma classificação dos tipos de fĂŁs de Bolsonaro e outra que conta coisas pouco conhecidas da vida de Olavo de Carvalho.
Isso dá um certo frescor a um livro que é, no final das contas, uma obra requentada.
Em resumo, pensando cá com meu zĂper, talvez uma regra subterrânea, algo em comum a todos as crĂ´nicas escolhidas, seja o fato de que elas falam de seu momento, mas, ao mesmo cheguem perto de se tornar um conto, uma narrativa com vida prĂłpria, que nĂŁo depende da leitura das manchetes do dia. Talvez.