🔓 Com H

Em meio à barbárie que nos cerca, é possível amparar-se na delicadeza e potência das letras na música e na literatura
Ilustração: Denise Gonçalves
12/01/2023

Escrevo enquanto ele dorme. Escrevi e fiz muito enquanto ele e outros eles dormiam.

Sempre que vejo aquela idiotice motivacional (de trabalhar enquanto os outros blablablá), me invadem, de maneira naufragante, dois sentimentos igualmente verdadeiros. O primeiro, de uma solidão profunda. O segundo, de uma paz silenciosa. Nunca, nunca me ocorreu algum tipo de vantagem competitiva capitalista idiota.

Ele do presente e outros eles do passado são homens.

Filho, também homem, comentou encantado sobre a força das letras do Chico Buarque. Com um pouco de sorte, a geração dele se sai melhor. Não que seja difícil, veja bem.

Canta uma esperança, revirando a noite, revelando o dia, canta a canção do homem, a canção do gozo e eu sei que a letra não é bem assim.

Chico, por (saber) ser frágil, não o é.

Eu fujo feito o diabo da cruz da produção intelectual/poética do homem cis hetero branco. Como absolutamente tudo na vida, isso também tem exceções.

Chico é uma.

Rogério Pereira é outro. Seu último livro me deixou sem fala durante alguns dias. São crônicas publicadas anteriormente que receberam algumas edições e uma excelente curadoria. O impacto é o conjunto. Há uma leitura possível — a que eu fiz — do livro como uma narrativa quase contínua. Sua força, assim como a do Chico, também está na fragilidade.

Absolutamente impactada e naufragada pelo texto do Rogério, de férias e com tempo livre, pego para ler um dos queridinhos da literatura contemporânea, vencedor de prêmios isso e aquilo. Não gostei. Não me pegou pela boca do estômago como Toda cicatriz desaparece (Maralto, 2022). Sabe, eu sou velhinha. A vida é curta. Larguei o livro. Sim, de homem hetero. Ai que preguiça.

Falo (duplo sentido) de masculinidade. Uma dimensão intergaláctica separa homens como Chico Buarque e Rogério Pereira do homem de bem que cometeu o ato terrorista do dia 8 de janeiro.

Outro no grupo dos maravilhosos, Ney Matogrosso. Ney, que homem. Homem com H é uma composição de Antônio Barros, mas eu sei que você, assim como eu, se lembra da música na voz do Ney.

Minha atenção se volta aos atentados terroristas bolsonaristas em Brasília. Ninguém invade um prédio desses sem a conivência da polícia. O estrago é muito maior do que um Di Cavalcanti. O que foi destruído foi o brasileiro. Perdemos nosso humor, nosso gingado, nossa alegria. E, por isso, jamais vou perdoar quem apoia esse ser nefasto e sua família de criminosos.

Houve um tempo em que achei que o diálogo era possível. Houve um tempo em que tentei compreender. Houve um tempo em que acreditei ser necessário respeitar a diversidade.

Hoje eu quero guilhotina.

Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho