Ir ao cinema Ă©, sem sombra de dĂşvida, o que eu mais gosto de fazer fora de casa. Muitos partilham desse gosto. Poucos, provavelmente, compartilham a associação muito especĂfica e particular que faço de Dimeticona com cinema. A Dimeticona Ă© mais ou menos da mesma linhagem do Luftal.
A história é da minha avó. Eu era muito pequena e precisei reconstruir na memória posteriormente, já que na época eu sequer sabia que isso era um remédio.
Ela tinha me levado para ir ver As aventuras de Bernardo e Bianca, dessa parte me lembro com clareza. Era, portanto, 1977 ou 1978 e eu tinha uns 6 ou 7 anos de idade; ela devia ter algo prĂłximo dos 60.
Bem Ă nossa frente, um sujeito inquieto. Levantou, sentou, tossiu, conversou com as pessoas ao lado, saiu para comprar pipoca, voltou, fez barulho ao tomar o final do refrigerante. SĂł nĂŁo mexeu no celular e fez selfies porque isso na Ă©poca ainda estava no plano da ficção cientĂfica, se tanto.
Minha avĂł estava irritadĂssima com os barulhos excessivos e desnecessários, como toda mulher Vigna. Abriu a bolsa e retirou um frasco do remĂ©dio. Virou-se para o cidadĂŁo e entregou para ele, dizendo “toma, meu filho, porque sĂł falta vocĂŞ peidar”.
Minha avó aprendeu desde muito cedo que a idade lhe garantia um certo salvo-conduto para dizer o que bem entendesse. Foi piorando conforme a idade avançava e ficava mais aparente e, portanto, inquestionável.
Anos depois, ela e eu na fila de um mercado. Ela comprando uĂsque, vĂcio que a acompanhou atĂ© quase o dia da sua morte, com 100 anos de idade. Eu, comprando cafĂ©, vĂcio que ainda tenho e que, espero, me acompanhe por tempo similar. Ă€ nossa frente uma senhora de talvez uns 60, 70 no máximo. Minha avĂł tinha, naquele momento, 92.
A senhorinha Ă nossa frente contava as moedas vagarosamente, conversava com a caixa, lembrava de alguma coisa, se perdia, voltava a contagem do zero, olhava para o cĂ©u, falava do tempo…
Minha avó, com a voz empostada, reclamou “olha, Carolina, se algum dia eu ficar uma velha assim, você por favor acaba com a minha miséria”. A senhora, naturalmente, se virou para comprar a briga, a falta de respeito com os idosos, etc. Deu de cara com a minha avó. As duas se calaram e a fila andou.
SĂŁo muitas as histĂłrias da impaciĂŞncia da minha avĂł. ImpaciĂŞncia com o mundo, de uma forma geral.
O pior Ă© que um dia, em um exercĂcio literário, escrevi uma histĂłria dela na primeira pessoa. Fui acusada de ser intolerante com os idosos. Primeiro tentei explicar. Depois deixei pra lá porque meu interlocutor obviamente nĂŁo entendeu o conceito de literatura.
As mulheres Vigna nĂŁo sĂŁo exatamente famosas por sua paciĂŞncia.
Eu nĂŁo, eu sou uma flor.