🔓 Cega, de Francisca Júlia

Em soneto convencional, os versos de Francisca Júlia são sensíveis e comovem
Francisca Julia, autora de “Mármores”
01/04/2023

Trôpega, os braços nus, a fronte pensa, várias
vezes, quando no céu o louro sol desponta,
vejo-a, no seu andar de sonâmbula tonta,
despertando a mudez das vielas solitárias.

Arrimada ao bordão, lá vai… Imaginárias
cousas pensa… Verões e invernos maus afronta…
Dores que tem sofrido a todo mundo conta
na linguagem senil das suas velhas árias.

Cega! que negra mão, entre os negros escolhos
do caos, foi procurar a treva, que enegrece,
para cegar-te a vista e escurecer-te os olhos?

Cega! quanta poesia existe, amargurada,
nesses olhos que estão sempre abertos e nesse
olhar, que se abre para o céu, e não vê nada!…

Cerca de setenta poemas, sonetos em sua maioria, e algumas traduções compõem toda a obra de Francisca Júlia — obra tão curta quanto a vida: faleceu, ao que parece um suicídio, aos 49 anos, em 1920, horas após o velório do marido. Publicou dois livros de poemas: Mármores, em 1895; e Esfinges, em 1903, no qual revê o livro de estreia, mantendo ou incluindo obras, e acrescentando inéditas (Cega é um dos novos sonetos, tendo antes sido publicado pelo irmão Júlio César na revista Illustração ainda em 1903). Os títulos chamam a atenção, como se fizessem um arco da objetividade fria do Parnasianismo aos mistérios místicos do Simbolismo. Na história da poesia brasileira feita por mulheres, o nome de Francisca Júlia constitui um marco incontornável, sendo, por exemplo, a primeira poeta a aparecer com um poema, Musa impassível, na História concisa da literatura brasileira (1970), de Alfredo Bosi, que destaca que Mármores da poeta (“vinda após a consagração dos mestres”) “logo a alçou ao nível daqueles”. Depois dela, no livro de Bosi, somente Cecília Meireles e Clarice Lispector, entre as escritoras, se alçam a títulos de subcapítulos, ombreando com dezenas de escritores.

A expressão “mestres” recorda, de imediato, os conhecidos e iconoclásticos ensaios de Mário de Andrade, Mestres do passado, de 1921. No ensaio dedicado a ela, ou contra ela, Mário logo no início diz que Francisca Júlia “negou-se à sensibilidade, ao lirismo, à comoção”, disparando outros petardos irônicos em direção à poesia da paulista de Eldorado: “Não quero dizer mais coisas desagradáveis da ilustre artífice do verso brasileiro”. Mário, que em inúmeras cartas discorreu sobre a generosidade crítica, quis nestes ensaios derrubar os tais mestres parnasianos, todos, para abrir caminho aos ventos modernistas. Mas como negar sensibilidade, lirismo e comoção ao poema Cega? A despeito de toda a arquitetura que um soneto, se convencional, busca seguir, o que pode lhe dar um tom cerebral e artificial, os versos de Francisca Júlia são, sim, sensíveis e comovem. O drama da personagem cega recebe contornos surpreendentes, em época na qual a indiferença dava a nota. (Século depois, o drama de quem tem necessidades especiais permanece, apesar de haver, institucionalmente, leis que deveriam proteger e facilitar a vida de tais pessoas.)

O poema se assemelha a um quadro ou uma cena em câmera lenta: nas duas quadras, a poeta observa, condoída, com frequência (“várias vezes”), a mulher cega e idosa (“linguagem senil das suas velhas árias”) caminhando bem cedo (“o sol desponta”), com dificuldade (“trôpega”), calada e só (“mudez das vielas solitárias”), amparada em muleta, ora ensimesmada, ora interagindo com transeuntes, aos quais conta algo de sua sofrida existência; nos dois tercetos, a poeta pergunta por que o destino (“negra mão”) impingiu-lhe a cegueira e, por fim, se solidariza com a velha: sua ausência de visão produz em ambas — poeta e cega — uma “poesia amargurada”. Também em outros poemas, de modo bem diverso de seus colegas parnasianos (e de poetas em geral), Francisca Júlia se solidariza com personagens subalternizados ou desprezados no cotidiano: uma costureira, em Rústica; uma jovem trabalhadora, em A florista; uns “pássaros feridos”, em A caçada; e alguns velhos, como em A um velho, que “vive de gozar a pungente saudade/ das noites sem abrigo e dos dias sem pão”. Seria mesmo esse o comportamento de uma “musa impassível”, como se quer rotular a poesia de Francisca Júlia?

Aqui, não há que se confundir, ainda que inseparáveis, sentimento e pensamento. No soneto, ademais em qualquer poema, a emoção deve querer “encontrar a mais justa adequação” (Caetano). Assim, na forma mesma sentimento e pensamento se encontram. Já no primeiro verso temos uma mostra dessa isomorfia, com os encontros consonantais — “Trôpega, os braços nus, a fronte” — encenando o próprio andar trôpego, dificultoso da cega idosa de muleta. Essa hesitação no andar tem eco no uso da mesma palavra, “pensa”, com sentidos diferentes: em “fronte pensa”, o adjetivo “inclinada, desajeitada, caída”; em “cousas pensa”, o verbo “reflete, pondera”. Retornando ao forte adjetivo proparoxítono, “Trôpega”, que dá partida ao poema, nele se perpetua o título do poema, Cega, que há de se repetir, ao longo do poema, como numa rima interna de tipo homoteleuto: trôpega/cega. Mas, sobretudo, o próprio esquema rítmico parece colaborar no sentido de amplificar o efeito desse “andar de sonâmbula tonta”, ficando assim o desenho das sílabas tônicas dos catorze alexandrinos, em que apenas os versos 1 e 7, e 2 e 6, repetem a mesma estrutura de acentos, enquanto todos os demais doze versos se sustentam em sílabas tônicas em lugares variados:

1) 1 4 6 8 10 12
2) 1 3 6 8 10 12
3) 1 4 6 9 12
4) 3 6 8 12
5) 3 6 7 8 12
6) 1 3 6 8 10 12
7) 1 4 6 8 10 12
8) 3 6 8 10 12
9) 1 4 6 7 9 12
10) 2 6 8 12
11) 1 4 6 10 12
12) 1 3 6 8 12
13) 1 3 6 7 9 12
14) 2 4 6 8 10 11 12

O espanto da poeta no primeiro terceto se intensifica com a repetição dos vocábulos “negra (mão)”, “negros (escolhos)”, “treva”, “enegrece” e “escurecer-te”, que, ladeados pelos termos “Cega!”, “caos” e “cegar-te”, evidenciam o transtorno daquela que vê (“vejo-a”) aquela que não vê. O espanto ainda mais se expande quando, no fecho, se impõe fantasmática a imagem dos “olhos que estão sempre abertos” em direção à imensidão do céu e, no entanto, nada veem. A semelhança sonora entre “cega” e “céu” produz outro conflito entre contrastes, pois, sendo cega, mesmo olhando em direção ao céu, nada vê. Tal qual “cega” parece estar em parte já em “trôpega”, também os “olhos” foram sequestrados pelos “escolhos”, isto é, pelos perigos, pelos obstáculos da existência.

A alusão à poesia, ao fim, que aproxima a condição amargurada da cega à tristeza que toma conta da poeta, insinua que a expressão “arrimada ao bordão” pode ser lida em dupla chave: a imediata, referida à situação da cega, amparada a uma muleta (ou cajado); ou, sutil, à própria poesia, considerando que “arrimado” é “pôr em rima”, “empilhar”, e que “bordão” é “aquilo que se repete”. Ou seja, tal qual a velha cega, cujo cotidiano é atravessado por sua condição de “treva”, a poeta e o poema “várias vezes” repetem, arrimam, empilham essa trágica e amargurada condição: o título Cega e a reiteração do termo três vezes, mais as cinco ocorrências no terceto de “negra”, “negros”, “treva”, “enegrece” e “escurecer-te”, exemplificam, no poema, a acepção de bordão como repetição para obter efeito estético (em paralelo à acepção de “cajado”).

No excelente ensaio Cegueira e literatura, em Crítica em tempos de violência (2012), Jaime Ginzburg parte de uma obra de Cildo Meireles (O espelho cego), para articular uma vasta rede de obras que, a seu modo, pensam essa questão: desde o grego Tirésias, passando por contos de Guimarães Rosa (São Marcos) e Clarice Lispector (Amor), pelo filme Dançando no escuro, de Lars Von Trier, até se deter em um poema de Lara de Lemos (Cegos) e uma crônica de Paulo Mendes de Campos (O cego de Ipanema). Ginzburg, com precisão, diz que “é muito difícil tratar da cegueira dentro de uma reflexão teórica e estética. O assunto é extremamente intenso e delicado e exige o maior cuidado”. Diz ainda que, pelo menos, a cegueira pode ser pensada como “metáfora” e como “forma de experiência”. No caso do poema de Francisca Júlia, a personagem cega, em seu silêncio e solidão, “imaginárias/ cousas pensa… verões e invernos maus afronta…” — e as reticências indicam o limite da poeta (e do leitor) para adentrar essas “coisas imaginárias” da velha “arrimada ao bordão”.

Diferentemente de Mário de Andrade, Danilo Lôbo, em Francisca Júlia: entre o pincel e a pena (1991), diz que, “Dotada de sentidos privilegiados, de uma sensibilidade à flor da pele, Francisca Júlia reagia ao menor estímulo externo do mundo físico”. Esse poema e tantos outros da curta obra advertem que nem todo poema parnasiano provém de “uma máquina de fazer versos” (Oswald). O engenho de sua composição não elide a solidariedade, o espanto e o cuidado da poeta no trato do delicado assunto — a cegueira. Poeta e obra que, aliás, merecem lentes bem melhores do que tiveram até hoje.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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