Trôpega, os braços nus, a fronte pensa, várias
vezes, quando no céu o louro sol desponta,
vejo-a, no seu andar de sonâmbula tonta,
despertando a mudez das vielas solitárias.
Arrimada ao bordĂŁo, lá vai… Imaginárias
cousas pensa… Verões e invernos maus afronta…
Dores que tem sofrido a todo mundo conta
na linguagem senil das suas velhas árias.
Cega! que negra mĂŁo, entre os negros escolhos
do caos, foi procurar a treva, que enegrece,
para cegar-te a vista e escurecer-te os olhos?
Cega! quanta poesia existe, amargurada,
nesses olhos que estĂŁo sempre abertos e nesse
olhar, que se abre para o cĂ©u, e nĂŁo vĂŞ nada!…
Cerca de setenta poemas, sonetos em sua maioria, e algumas traduções compõem toda a obra de Francisca JĂşlia — obra tĂŁo curta quanto a vida: faleceu, ao que parece um suicĂdio, aos 49 anos, em 1920, horas apĂłs o velĂłrio do marido. Publicou dois livros de poemas: Mármores, em 1895; e Esfinges, em 1903, no qual revĂŞ o livro de estreia, mantendo ou incluindo obras, e acrescentando inĂ©ditas (Cega Ă© um dos novos sonetos, tendo antes sido publicado pelo irmĂŁo JĂşlio CĂ©sar na revista Illustração ainda em 1903). Os tĂtulos chamam a atenção, como se fizessem um arco da objetividade fria do Parnasianismo aos mistĂ©rios mĂsticos do Simbolismo. Na histĂłria da poesia brasileira feita por mulheres, o nome de Francisca JĂşlia constitui um marco incontornável, sendo, por exemplo, a primeira poeta a aparecer com um poema, Musa impassĂvel, na HistĂłria concisa da literatura brasileira (1970), de Alfredo Bosi, que destaca que Mármores da poeta (“vinda apĂłs a consagração dos mestres”) “logo a alçou ao nĂvel daqueles”. Depois dela, no livro de Bosi, somente CecĂlia Meireles e Clarice Lispector, entre as escritoras, se alçam a tĂtulos de subcapĂtulos, ombreando com dezenas de escritores.
A expressĂŁo “mestres” recorda, de imediato, os conhecidos e iconoclásticos ensaios de Mário de Andrade, Mestres do passado, de 1921. No ensaio dedicado a ela, ou contra ela, Mário logo no inĂcio diz que Francisca JĂşlia “negou-se Ă sensibilidade, ao lirismo, Ă comoção”, disparando outros petardos irĂ´nicos em direção Ă poesia da paulista de Eldorado: “NĂŁo quero dizer mais coisas desagradáveis da ilustre artĂfice do verso brasileiro”. Mário, que em inĂşmeras cartas discorreu sobre a generosidade crĂtica, quis nestes ensaios derrubar os tais mestres parnasianos, todos, para abrir caminho aos ventos modernistas. Mas como negar sensibilidade, lirismo e comoção ao poema Cega? A despeito de toda a arquitetura que um soneto, se convencional, busca seguir, o que pode lhe dar um tom cerebral e artificial, os versos de Francisca JĂşlia sĂŁo, sim, sensĂveis e comovem. O drama da personagem cega recebe contornos surpreendentes, em Ă©poca na qual a indiferença dava a nota. (SĂ©culo depois, o drama de quem tem necessidades especiais permanece, apesar de haver, institucionalmente, leis que deveriam proteger e facilitar a vida de tais pessoas.)
O poema se assemelha a um quadro ou uma cena em câmera lenta: nas duas quadras, a poeta observa, condoĂda, com frequĂŞncia (“várias vezes”), a mulher cega e idosa (“linguagem senil das suas velhas árias”) caminhando bem cedo (“o sol desponta”), com dificuldade (“trĂ´pega”), calada e sĂł (“mudez das vielas solitárias”), amparada em muleta, ora ensimesmada, ora interagindo com transeuntes, aos quais conta algo de sua sofrida existĂŞncia; nos dois tercetos, a poeta pergunta por que o destino (“negra mĂŁo”) impingiu-lhe a cegueira e, por fim, se solidariza com a velha: sua ausĂŞncia de visĂŁo produz em ambas — poeta e cega — uma “poesia amargurada”. TambĂ©m em outros poemas, de modo bem diverso de seus colegas parnasianos (e de poetas em geral), Francisca JĂşlia se solidariza com personagens subalternizados ou desprezados no cotidiano: uma costureira, em RĂşstica; uma jovem trabalhadora, em A florista; uns “pássaros feridos”, em A caçada; e alguns velhos, como em A um velho, que “vive de gozar a pungente saudade/ das noites sem abrigo e dos dias sem pĂŁo”. Seria mesmo esse o comportamento de uma “musa impassĂvel”, como se quer rotular a poesia de Francisca JĂşlia?
Aqui, nĂŁo há que se confundir, ainda que inseparáveis, sentimento e pensamento. No soneto, ademais em qualquer poema, a emoção deve querer “encontrar a mais justa adequação” (Caetano). Assim, na forma mesma sentimento e pensamento se encontram. Já no primeiro verso temos uma mostra dessa isomorfia, com os encontros consonantais — “TrĂ´pega, os braços nus, a fronte” — encenando o prĂłprio andar trĂ´pego, dificultoso da cega idosa de muleta. Essa hesitação no andar tem eco no uso da mesma palavra, “pensa”, com sentidos diferentes: em “fronte pensa”, o adjetivo “inclinada, desajeitada, caĂda”; em “cousas pensa”, o verbo “reflete, pondera”. Retornando ao forte adjetivo proparoxĂtono, “TrĂ´pega”, que dá partida ao poema, nele se perpetua o tĂtulo do poema, Cega, que há de se repetir, ao longo do poema, como numa rima interna de tipo homoteleuto: trĂ´pega/cega. Mas, sobretudo, o prĂłprio esquema rĂtmico parece colaborar no sentido de amplificar o efeito desse “andar de sonâmbula tonta”, ficando assim o desenho das sĂlabas tĂ´nicas dos catorze alexandrinos, em que apenas os versos 1 e 7, e 2 e 6, repetem a mesma estrutura de acentos, enquanto todos os demais doze versos se sustentam em sĂlabas tĂ´nicas em lugares variados:
1) 1 4 6 8 10 12
2) 1 3 6 8 10 12
3) 1 4 6 9 12
4) 3 6 8 12
5) 3 6 7 8 12
6) 1 3 6 8 10 12
7) 1 4 6 8 10 12
8) 3 6 8 10 12
9) 1 4 6 7 9 12
10) 2 6 8 12
11) 1 4 6 10 12
12) 1 3 6 8 12
13) 1 3 6 7 9 12
14) 2 4 6 8 10 11 12
O espanto da poeta no primeiro terceto se intensifica com a repetição dos vocábulos “negra (mão)”, “negros (escolhos)”, “treva”, “enegrece” e “escurecer-te”, que, ladeados pelos termos “Cega!”, “caos” e “cegar-te”, evidenciam o transtorno daquela que vê (“vejo-a”) aquela que não vê. O espanto ainda mais se expande quando, no fecho, se impõe fantasmática a imagem dos “olhos que estão sempre abertos” em direção à imensidão do céu e, no entanto, nada veem. A semelhança sonora entre “cega” e “céu” produz outro conflito entre contrastes, pois, sendo cega, mesmo olhando em direção ao céu, nada vê. Tal qual “cega” parece estar em parte já em “trôpega”, também os “olhos” foram sequestrados pelos “escolhos”, isto é, pelos perigos, pelos obstáculos da existência.
A alusĂŁo Ă poesia, ao fim, que aproxima a condição amargurada da cega Ă tristeza que toma conta da poeta, insinua que a expressĂŁo “arrimada ao bordĂŁo” pode ser lida em dupla chave: a imediata, referida Ă situação da cega, amparada a uma muleta (ou cajado); ou, sutil, Ă prĂłpria poesia, considerando que “arrimado” Ă© “pĂ´r em rima”, “empilhar”, e que “bordĂŁo” Ă© “aquilo que se repete”. Ou seja, tal qual a velha cega, cujo cotidiano Ă© atravessado por sua condição de “treva”, a poeta e o poema “várias vezes” repetem, arrimam, empilham essa trágica e amargurada condição: o tĂtulo Cega e a reiteração do termo trĂŞs vezes, mais as cinco ocorrĂŞncias no terceto de “negra”, “negros”, “treva”, “enegrece” e “escurecer-te”, exemplificam, no poema, a acepção de bordĂŁo como repetição para obter efeito estĂ©tico (em paralelo Ă acepção de “cajado”).
No excelente ensaio Cegueira e literatura, em CrĂtica em tempos de violĂŞncia (2012), Jaime Ginzburg parte de uma obra de Cildo Meireles (O espelho cego), para articular uma vasta rede de obras que, a seu modo, pensam essa questĂŁo: desde o grego TirĂ©sias, passando por contos de GuimarĂŁes Rosa (SĂŁo Marcos) e Clarice Lispector (Amor), pelo filme Dançando no escuro, de Lars Von Trier, atĂ© se deter em um poema de Lara de Lemos (Cegos) e uma crĂ´nica de Paulo Mendes de Campos (O cego de Ipanema). Ginzburg, com precisĂŁo, diz que “é muito difĂcil tratar da cegueira dentro de uma reflexĂŁo teĂłrica e estĂ©tica. O assunto Ă© extremamente intenso e delicado e exige o maior cuidado”. Diz ainda que, pelo menos, a cegueira pode ser pensada como “metáfora” e como “forma de experiĂŞncia”. No caso do poema de Francisca JĂşlia, a personagem cega, em seu silĂŞncio e solidĂŁo, “imaginárias/ cousas pensa… verões e invernos maus afronta…” — e as reticĂŞncias indicam o limite da poeta (e do leitor) para adentrar essas “coisas imaginárias” da velha “arrimada ao bordĂŁo”.
Diferentemente de Mário de Andrade, Danilo LĂ´bo, em Francisca JĂşlia: entre o pincel e a pena (1991), diz que, “Dotada de sentidos privilegiados, de uma sensibilidade Ă flor da pele, Francisca JĂşlia reagia ao menor estĂmulo externo do mundo fĂsico”. Esse poema e tantos outros da curta obra advertem que nem todo poema parnasiano provĂ©m de “uma máquina de fazer versos” (Oswald). O engenho de sua composição nĂŁo elide a solidariedade, o espanto e o cuidado da poeta no trato do delicado assunto — a cegueira. Poeta e obra que, aliás, merecem lentes bem melhores do que tiveram atĂ© hoje.