🔓 Cardumes

O Rio de Janeiro como uma sequência de estrias, celulites, cicatrizes, enquanto o tempo passa rumo ao fim inevitável
Ilustração: Denise Gonçalves
27/04/2023

Contrariando o conselho de todos os meus amigos, fui vê-la.

Tubos em profusão para um corpo no diminutivo.

Fico no hospital por horas que parecem anos.

Saio envelhecida, cansada, abatida. Saio, por outro lado, feliz porque saio.

Estou melhor do que quem fica.

Ela fica.

A noite chega.

Caminho pela lateral do Cemitério São João Batista com um grupo que me representa pela heterogeneidade. Questiono a escolha de calçada. Noite adentro, a resposta foi certeira: “assim parecemos um grupo de almas penadas e ninguém nos assalta”. O Rio de Janeiro não é para amadores.

Ao entrar no bairro, tropeçamos em um dos muitos desníveis da cidade. São, na verdade, raízes de árvores que não foram cortadas e que elevam as pedras portuguesas. As estrias da cidade, marcas indeléveis de uma biografia.

O Rio de Janeiro, para mim, é uma sequência de estrias, celulites, cicatrizes. Não tenho uma boa relação com a cidade, mesmo sendo, de fato, linda.

Penso novamente nos corpos, meu e dela.

Lembro de Damien Hirst e seus vanitas contemporâneos. O tubarão está lá preservado no formol. Quem está em decadência somos nós. O título é um tratado filosófico: The physical impossibility of death in the mind of someone living.

Seguimos, como um cardume, até um dos bares da minha adolescência. Continua como eu me lembrava mas, dessa vez, achei desconfortável, cadeira dura, mesa torta, essas coisas. Definitivamente estou envelhecendo.

Ela está lá mas não está. O quadro gravíssimo exige sedação e essa, por sua vez, impõe o silêncio. Eu não falo, ela não escuta, ela não fala, eu não escuto. Pouco mudou, pensando bem.

Um dos tubarões apresenta o conceito de que o coração, como músculo que é, se torna mais forte a cada vez que se rompe. Pouco importa que o órgão responsável pelo sentimento não é esse. Não sei nem mesmo se isso tem algum fundamento biológico. A metáfora é válida e eu sou de Humanas, dane-se.

Não sei o que seria da minha vida sem esses cardumes. São eles que sempre me salvam a vida e o sorriso. São-somos-sou muitos peixes diferentes. Não paramos de nadar.

O que ela tem, afinal? “Uma biografia”, responde um irmão, outro tubarão.

Exausta, de tantos tubos e de tantos corpos frágeis, volto para o hotel, onde um espelho sem piedade mostra outro corpo envelhecido e flácido. É, afinal de contas e finalmente, uma senhora de meia-idade que me olha indignada.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho