🔓 Cabeça ou dedo? Eis a questão

De um presidente que se diz “imbrochável” aos caminhos que levam a um texto
11/09/2022

Sempre tento escrever aqui no Rascunho sobre algum problema que estou enfrentando como escritor. Pois no recente dia 8 de setembro, acordei às quatro da manhã com uma questão muito difícil: como falar sobre o discurso do presidente, no qual ele pede que a multidão o chame de “imbrochável”?

Ops! Antes de continuar, um parêntese explicativo: (escrevo, no Facebook e no Instagram (@jrtorero), uma coluna chamada Diário do Bolso. É como se o presidente escrevesse alguma coisa num caderninho todos os dias. Não é remunerada nem nada. É só para evitar que minha bílis se acumule.)

Aquele inesquecível momento da história pátria, quando os fãs do presidente elogiam a suposta infalibilidade de seu pênis, certamente seria o mote de minha crônica. Mas o que eu poderia dizer? Era tudo tão absurdo, tão inesperado e inacreditável, que parecia impossível para a literatura concorrer com o jornalismo.

Eu não conseguia pensar em nada que fosse um pouco surpreendente e até cogitei em fugir do assunto, trocando o cetro presidencial pelas mordomias dadas aos militares. Mas seria covardia.

Então fui dar uma olhada no Twitter, esperando que alguma frase, meme ou charge me dessem a clave de sol para o texto. Mas havia apenas alguns trocadilhos. Era pouco para tanto. Parecia impossível satirizar o que já era ridículo de nascença.

Uma saída seria demonstrar raiva. Mas isso me parece inútil sob vários ângulos.

Daí meu cérebro fez uma estranha ligação: já que o assunto era a palavra “imbrochável”, vi, num flash, a imagem que motivou o meu texto do mês passado (Pênis ou não, eis a questão), no qual um super-herói luta contra um gigantesco falo.

Daí veio a ideia de trocar o super-herói pelo presidente, e fazê-lo acordar com um pênis gigante em seu quarto, querendo tomar satisfações. Isso me pareceu promissor e comecei a escrever.

Mas, quando estava nas primeiras linhas, achei melhor trocar o ambiente da crônica, mudando do quarto para o banheiro, colocando o dito imbrochável na privada presidencial.

Curiosamente, a mudança de ambiente acabou mudando todo o texto, porque achei que Bolsonaro poderia, em vez de conversar com um membro gigante, conversar com o próprio, já que ele estaria, digamos, mais à mão.

O próximo passo foi decidir como seria a personalidade peniana. Achei que o mais engraçado seria deixá-lo descontente com o falso elogio, até mesmo indignado.

Então fiz a primeira versão e as reescrituras.

O texto acabou fazendo um razoável sucesso na internet e certamente estará no Diário do Bolso 6, que, espero, será o último livro da série.

Mas o interessante é ver o curioso caminho do que chamam de inspiração (prefiro os termos “raciocínio”, “pesquisa” e “busca”). O tema nasceu de uma palavra e uma imagem indicou o caminho. Mas a troca do ambiente da história, quando ela ainda estava nas primeiras linhas, acabou provocando uma guinada no texto.

E esse último passo me faz pensar que a gente não escreve apenas com a cabeça, mas também com os dedos que batucam o teclado.

Só quando o texto ganha uma certa materialidade é que realmente define seu caminho. Mesmo que façamos muitas escaletas e imaginemos o enredo do começo ao fim, no momento em que a tinta sai da caneta, ou a letra aparece na tela, o texto é repensado, reavaliado, reinventado.

Antes de se materializar, o texto é só uma promessa vã. Mais ou menos como se dizer “imbrochável”.

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

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