Sempre tento escrever aqui no Rascunho sobre algum problema que estou enfrentando como escritor. Pois no recente dia 8 de setembro, acordei às quatro da manhã com uma questão muito difícil: como falar sobre o discurso do presidente, no qual ele pede que a multidão o chame de “imbrochável”?
Ops! Antes de continuar, um parêntese explicativo: (escrevo, no Facebook e no Instagram (@jrtorero), uma coluna chamada Diário do Bolso. É como se o presidente escrevesse alguma coisa num caderninho todos os dias. Não é remunerada nem nada. É só para evitar que minha bílis se acumule.)
Aquele inesquecível momento da história pátria, quando os fãs do presidente elogiam a suposta infalibilidade de seu pênis, certamente seria o mote de minha crônica. Mas o que eu poderia dizer? Era tudo tão absurdo, tão inesperado e inacreditável, que parecia impossível para a literatura concorrer com o jornalismo.
Eu não conseguia pensar em nada que fosse um pouco surpreendente e até cogitei em fugir do assunto, trocando o cetro presidencial pelas mordomias dadas aos militares. Mas seria covardia.
Então fui dar uma olhada no Twitter, esperando que alguma frase, meme ou charge me dessem a clave de sol para o texto. Mas havia apenas alguns trocadilhos. Era pouco para tanto. Parecia impossível satirizar o que já era ridículo de nascença.
Uma saída seria demonstrar raiva. Mas isso me parece inútil sob vários ângulos.
Daí meu cérebro fez uma estranha ligação: já que o assunto era a palavra “imbrochável”, vi, num flash, a imagem que motivou o meu texto do mês passado (Pênis ou não, eis a questão), no qual um super-herói luta contra um gigantesco falo.
Daí veio a ideia de trocar o super-herói pelo presidente, e fazê-lo acordar com um pênis gigante em seu quarto, querendo tomar satisfações. Isso me pareceu promissor e comecei a escrever.
Mas, quando estava nas primeiras linhas, achei melhor trocar o ambiente da crônica, mudando do quarto para o banheiro, colocando o dito imbrochável na privada presidencial.
Curiosamente, a mudança de ambiente acabou mudando todo o texto, porque achei que Bolsonaro poderia, em vez de conversar com um membro gigante, conversar com o próprio, já que ele estaria, digamos, mais à mão.
O próximo passo foi decidir como seria a personalidade peniana. Achei que o mais engraçado seria deixá-lo descontente com o falso elogio, até mesmo indignado.
Então fiz a primeira versão e as reescrituras.
O texto acabou fazendo um razoável sucesso na internet e certamente estará no Diário do Bolso 6, que, espero, será o último livro da série.
Mas o interessante é ver o curioso caminho do que chamam de inspiração (prefiro os termos “raciocínio”, “pesquisa” e “busca”). O tema nasceu de uma palavra e uma imagem indicou o caminho. Mas a troca do ambiente da história, quando ela ainda estava nas primeiras linhas, acabou provocando uma guinada no texto.
E esse último passo me faz pensar que a gente não escreve apenas com a cabeça, mas também com os dedos que batucam o teclado.
Só quando o texto ganha uma certa materialidade é que realmente define seu caminho. Mesmo que façamos muitas escaletas e imaginemos o enredo do começo ao fim, no momento em que a tinta sai da caneta, ou a letra aparece na tela, o texto é repensado, reavaliado, reinventado.
Antes de se materializar, o texto é só uma promessa vã. Mais ou menos como se dizer “imbrochável”.