🔓 Barra pesada, de André Bueno

Em versos curtos, diretos, objetivos, referenciais, poema faz um retrato de época da ditadura militar no Brasil
01/03/2023

em 1968
eu não sabia nada
de história
política
socialismo
guerrilha
tortura

em 1968
eu tinha 14 anos
estava diante do vídeo
vendo beto rockfeller
cheio de saudade
seco pra chorar

de 64 a 68
sem saber de nada
dava pra sentir
a barra no ar:
sumiu um professor
marido da professora
primária

depois
sumiu o professor
de matemática
delatado pelo professor
de física
no fim
sumiram os meninos
do grêmio ginasial
falava-se em porrada
mortes
e a palavra subversivo
comunista
soava mais perigosa
que qualquer tabu
zona proibida
das fantasias
infantis e adolescis

era, como sei agora,
a realidade
uma barra pesada
impossível de retocar

Esse poema de André Bueno pertence ao livro Brasa Brasil, de 1979. Em cinco estrofes, com nítida marcação temporal, e versos curtos, diretos, objetivos, referenciais, desde o título Barra pesada, se faz um retrato de época da ditadura militar no Brasil. O título do livro, aliás, também confirma que o olhar do então jovem poeta está bem antenado com seu entorno: se o termo “brasa” se associa ao significado de Brasil, considerando a cor vermelha da madeira pau-brasil (étimo lírico e controverso), de modo similar lembra o contexto incandescente, perigoso, bélico do regime autoritário. Um país em brasas.

Se o leitor toma por baliza a data da publicação, quando elabora o poema o jovem — com 14 anos em 1968 — agora em 1979 tem 25 anos. Adolescente, “não sabia nada/ de história/ política/ socialismo/ guerrilha/ tortura”, possivelmente por conta da censura e do controle de informações (“a palavra subversivo/ comunista/ soava mais perigosa”). Dos 11 aos 14 anos, do golpe de 1964 ao endurecimento geral com a decretação do AI-5 em 13 de dezembro de 1968, o estudante, ainda “sem saber de nada”, ia percebendo “a barra no ar”, com o desaparecimento sistemático de professores e alunos “do grêmio ginasial”, alunos em geral com militância política.

Durante um ano, de novembro de 1968 a novembro de 1969, a TV Tupi exibiu a famosa novela Beto Rockfeller, de grande audiência e com algumas inovações no formato folhetinesco. O rapaz de 14 anos, como boa parte da população brasileira, acompanhava a trama com pitadas de comédia, enquanto o governo sequestrava, torturava, matava os tais “subversivos comunistas”, com apoio inclusive de grande parte dessa população, que delatava cidadãos suspeitos de atuarem contra o regime que, afinal, defendia a Tradição, a Família, a Propriedade. (Semelhanças com o governo de ultradireita que se encerrou em dezembro de 2022 não são coincidências.)

O próprio autor do poema, anos mais tarde, em 1984, em parceria com o colega Fred Góes, publica um volume da popularíssima, entre universitários sobretudo, coleção Primeiros passos, com o título O que é geração beat, em que traçam um panorama do contexto histórico de então:

Se depois de [19]68 houve um forte refluxo nos Estados Unidos e na Europa, no Brasil houve uma tragédia. Uma parte da juventude da classe média aderiu ao milagre, botou plástico de universidade nos carros, e foi curtir sambão joia em bares da moda. Outra parte desbundou, mas um desbunde diferente, porque os nossos desbundados não conseguiram se politizar, não conseguiram avançar, mas no geral viveram suas utopias, envolvendo sexo, drogas e rockn’roll, pelo menos, como uma forma de inconformismo diante da caretice vigente. Enfim, uma terceira parte da juventude da classe média, vinda direto do movimento estudantil, uniu-se a veteranos militantes da esquerda para tentar o caminho da luta armada contra a ditadura militar.

A voz lírica no poema, tentando decifrar o que acontecia à volta, ganha respaldo e explicação nas reflexões ensaísticas do professor de literatura e teoria literária da UFRJ, com doutorado sobre Torquato Neto e conhecido por sua predileção pelo materialismo histórico-dialético, como se verifica em suas aulas e em textos, feito Formas da crise — estudos de literatura, cultura e sociedade (2002).

O poema e o livro como um todo são exemplos do “poemão” da poesia marginal, conforme expressão de Cacaso. Em Brasa Brasil, os desenhos de Ciça Fittipaldi dialogam de modo estreito com os poemas, em sua maioria com letra cursiva e toda minúscula, reforçando o espírito escolar dos poemas em suporte de “livrinho caseiro”, sem lombada e com dois grampos apenas, enquanto explora com intensidade os efeitos visuais, provável herança da poesia concreta. Ao longo das páginas, outras referências e alusões vão se justapondo. Marx, Mautner, Bressane, Polari, Torquato se dão as mãos nessas “líricas idílicas juvenis”, “lírica de pedaços”, entre utopias e revoluções, medos e melancolias, com linguagem coloquial e cortes cinematográficos à maneira de Oswald: “mas cumé qui podi a noite/ a festa poemas tão prontos/ olhos dengues tequilas/ cheiros beijos tragadas/ alta/ altíssima madrugada/ mas cumé qui podi a vida (…)”. Um fragmentado calidoscópio vai se colando nos versos: “depois da bossa nova/ chanchadas arena cinema novo/ cpc poesia concreta/ ligas camponesas golpe militar/ greves festivais passeatas/ oficina experiências/ contraculturas/ diários prisões hospícios/ torturas outros fatos/ atos/ da ordem burguesa/ na qual reconheço meu rosto/ e o teu (…)”. Em paralelo a festas e corpos em trânsito, a vida nos anos de chumbo misturava música, cinema, teatro, literatura — Arena, CPC, Oficina. Movimentos sociais e populares passam a ser combatidos: golpe, prisões, torturas: “falava-se em porrada/ mortes”, se diz em Barra pesada.

A principal objeção que se faz à poesia marginal é notadamente a supremacia do relaxo em relação ao capricho (Leminski). Questão de valor e, portanto, de critérios. Acontece, porém, que esta é uma poética do medo, da emoção, rápida, performática, como uma blitz, que quer captar o instante, deixando a “estética” em segundo plano. O cerebralismo, o antilirismo, o internacionalismo e o pragmatismo típicos de um Cabral ou do Concretismo ficam em suspenso. A primazia, nos anos 1970, é a necessidade imperiosa de registrar a memória do tempo — memória da resistência, dirá o historiador José Luiz Werneck da Silva em A deformação da história ou para não esquecer (1985):

a muitas memórias coletivas foi imposto o silêncio, como a dos intelectuais punidos pela ditadura. A outras memórias coletivas foi imposto o esquecimento, como a dos militantes de esquerda, da guerra revolucionária. Muitas vidas humanas também foram esquecidas ou até mesmo silenciadas definitivamente pela ditadura, dentre os que “fizeram vivendo” as memórias da resistência.

Walter Benjamin, em conhecido trecho das conhecidas teses Sobre o conceito de história, diz: “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”. Nos poemas de Brasa Brasil e em particular em Barra pesada, André Bueno ilustra, em versos, esse filosofema, ao fixar (guardar na memória, no poema) o passado e reconhecê-lo (tomando conhecimento efetivo dele) no momento possível. O adulto de 25 anos, em 1979, recorda o adolescente de 14 anos, que vai tendo contato, em meio a suas “fantasias/ infantis e adolescis”, com a barra pesada da ditadura, até 1968, e depois, no fim e agora. O leve humor de Beto Rockfeller e das fantasias convivia com o pesadíssimo horror da delação, do sequestro, da porrada, da tortura, das mortes.

No início de seu clássico livro Retrato de época — poesia marginal, anos 70 (1981), Carlos Alberto Messeder Pereira afirma: “Acredito, portanto, que o ‘retrato de época’ a que se refere o título deste trabalho diz respeito tanto ao objeto analisado quanto ao pesquisador que realizou a pesquisa”. O poema de André Bueno tem, para usar terminologia da prosa ficcional, um narrador memorialista, que repensa o adolescente que foi, entre ingênuo e desinformado, e o adulto que é, ou era no momento, militante e esclarecido. Ao se pensar como sujeito histórico no mundo, e seu processo de conscientização e de transformação, o poeta diz a um tempo de si mesmo, de sua geração e de todos que, mesmo diante de barras bem pesadas, conseguem se retocar. Para recordar gíria antiga, saber retocar-se é uma brasa, mora? E, vendo o Brasil de outrora e de agora, nada impossível.

Em memória e honra de todas as vítimas da ditadura. Sem anistia!

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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