🔓 Baluarte com artigo feminino

Uma visita à trajetória de sucesso de Dona Ivone Lara, que completaria 100 anos nesta quarta-feira e foi figura essencial do Império Serrano
Dona Ivone Lara completaria 100 anos nesta quarta-feira (13)
13/04/2022

Tão característica do universo das escolas de samba, a palavra baluarte continua a ser classificada como substantivo masculino nos dicionários da língua portuguesa. Mas Dona Ivone Lara, que completaria 100 anos neste 13 de abril de 2022, viveu para desdizer os manuais. Impossível pensarmos nos sentidos do termo — seja quando denota fortaleza, seja na conotação de referência ancestral — sem que venha imediatamente à lembrança o nome da cantora e compositora. Sim, a baluarte. Do Império Serrano, do samba, da música de forma irrestrita.

Em 96 anos de existência, Dona Ivone construiu um enredo improvável. Vinda de uma infância pobre e de uma família em que a perspectiva de chegar à universidade não passava de sonho distante, formou-se assistente social e enfermeira. Trabalhou com a médica Nise da Silveira na aplicação das terapias que revolucionaram, na década de 1970, o tratamento psiquiátrico. Como artista, experimentou de forma radicalmente íntima o encontro entre popular e erudito que daria contornos singulares à música brasileira.

Dentro de casa, aliás, a música sempre esteve presente. O pai tocava violão de sete cordas, a mãe era pastora de ranchos, como o célebre Ameno Resedá. Ainda menina, Ivone estudou canto orfeônico, disciplina que fazia parte do programa da rede municipal. Na Escola Orsina da Fonseca, foi aluna da pianista Lucília Guimarães, esposa do maestro Heitor Villa-Lobos, e da soprano Zaíra de Oliveira, mulher do sambista Donga. “Ia pro colégio interno, via um mundo diferente. Voltava pra casa, via outra coisa. Saía de novo, e mais uma coisa”, contou ela à biógrafa Mila Burns, quando indagada sobre o contraste entre o cotidiano familiar e o dia a dia na escola.

A estreia como compositora aconteceria aos doze anos, com Tiê. A canção teve inspiração no passarinho que os primos mais velhos, Hélio e Fuleiro, lhe deram de presente. Seria mantida no repertório da cantora até os últimos shows. Fuleiro, que mais tarde se notabilizou como mestre de harmonia do Império Serrano, acabaria se transformando num dos principais responsáveis pela trajetória artística de Dona Ivone. Foi ele quem começou a cantar as músicas da prima nas rodas de samba do subúrbio. Ivone gostava de frequentar essas rodas, ainda que de forma discreta. Uma delas acontecia na casa de seu Alfredo Costa, o comandante da Prazer da Serrinha. Quando um grupo dissidente deixou a agremiação e fundou o Império, em 1947, ela foi junto. Algumas décadas depois, passaria a integrar oficialmente a ala dos compositores da nova escola.

A gravação inaugural, contudo, só veio em 1970. A coletânea Sambão 70 apresentava também Clementina de Jesus e Roberto Ribeiro. Naquele mesmo período, por sugestão dos produtores Oswaldo Sargentelli e Adelzon Alves, a Yvonne Lara da certidão de nascimento se tornou Dona Ivone Lara. Não sem protesto. “Dona? Pra quê Dona? Não quero isso, não, sou nova, ainda. Não tenho nem cinquenta anos, imaginem!”, respondeu aos dois ao ouvir a proposta.

Em 1974, Clara Nunes faria de Alvorecer a música-título de seu novo disco. A parceria de Ivone com Delcio Carvalho teve ótimo desempenho nas rádios. Mas o primeiro contato da maior parte das pessoas com a obra da compositora só se daria mesmo quatro anos depois. Foi também o meu caso. Consigo vislumbrar a cena ainda hoje. No quarto da minha irmã Mary, sobre as prateleiras improvisadas com tábuas sobre tijolos envernizados, girava na vitrola o álbum que Maria Bethânia acabara de lançar. A oitava faixa do LP Álibi era Sonho meu, na qual Bethânia dueta com Gal Costa. Mais uma dobradinha de Dona Ivone com Delcio. Com suas estrofes que falam da saudade de alguém que mora longe, a canção confirmava a potência poética da dupla de compositores. “No meu céu, a estrela-guia se perdeu”, dizia a letra de Delcio, como que traduzindo a melodia.

Não sei quantas vezes esse LP foi ouvido lá em casa naqueles meses de 1978. O menino de seis anos logo descobriria que uma das autoras da música tão presente no toca-discos era uma “baiana ali do Império Serrano”. Pois é: numa casa de Madureira, de uma família intimamente ligada ao bairro, ao seu cotidiano e às suas escolas de samba, a imperiana Ivone chegou por vozes outras.

Sonho meu estourou em todo o país e abriu caminho para a estreia de Dona Ivone em trabalho solo. Samba, minha verdade, minha raiz, lançado em 1978, trazia sambas de terreiro do Império e da Portela, além de oito composições próprias. Seis delas tinham a assinatura Ivone Lara/Delcio Carvalho, que ficaria consagrada como sinônimo de qualidade.

O encontro com Delcio data de 1972, temporada em que Ivone andava abatida com a morte do amigo Silas de Oliveira. Angustiado pela tristeza da companheira, o marido, Oscar, pediu ao jovem letrista que escrevesse alguns versos para ela. Três anos depois, era Oscar quem partia. O abismo parecia se ampliar, poço sem fundo. E o recém-instituído parceiro conseguiu, com seu talento, transformar aquela dor funda em poesia. “O Delcio fazia letras tristes porque olhava para mim e sabia o que eu estava querendo dizer com as minhas melodias”, comentou certa vez a compositora.

Nos 12 álbuns da carreira, Dona Ivone criou uma impressionante sequência de pérolas em forma de canção. Acreditar, Minha verdade, Doces recordações (com Delcio), Mas quem disse que eu te esqueço (com Hermínio Bello de Carvalho), Enredo do meu samba, Tendência (com Jorge Aragão), Alguém me avisou. Como se não bastasse, foi a primeira mulher a vencer o concurso de samba-enredo numa grande escola. E não se trata de um samba qualquer, mas de Os cinco bailes da história do Rio, o extraordinário hino feito em parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau que o Império Serrano levou à Avenida em 1965 e integra sem favor o rol dos maiores de todos os tempos. Em 2012, ela própria viraria enredo do Império. As tais flores em vida.

Sem se encaixar em nenhum dos tipos que o mundo do samba ainda hoje costuma reservar ao gênero feminino — não era “tia”, nem passista, nem musa —, Dona Ivone entortou o destino previamente traçado para uma mulher de sua origem e de sua época. Foi esposa, mãe, enfermeira, assistente social, artista na mais plena acepção do vocábulo. A ponto de nome e ofício se amalgamarem, tornarem-se uma coisa só, como sugere o verso de Nei Lopes e Claudio Jorge. “Ivone Larararaia Lararaia”, nossa baluarte. Os dicionários que se virem.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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