(16/12/20)
A primeira vez que subi uma favela foi ainda na infância. Todo dia 1o de maio, acompanhava meu tio-avô Chico na escalada dos 366 degraus que levam da Rua Alves à Capela de São José da Pedra, no alto do Morro de São José, em Madureira. O pessoal do bairro jura que é um nível a mais do que na escadaria da Igreja da Penha, mas a famosa coirmã conta, na verdade, com 382 degraus. Lenda urbana, portanto.
Fundada em 1937, a capela guarda uma história curiosa. Sua origem remonta a mais de quarenta anos antes, quando três caçadores – vale lembrar que Madureira era uma região rural – teriam encontrado uma efígie de São José sobre uma pedra e erguido, ali, um pequeno altar. Conta-se que a imagem do santo insistiu em aparecer na área e, impressionado, o dono do terreno permitiu a construção da capela. Ele se chamava José Francisco Lisboa.
Embora mais conhecido pelos residentes do subúrbio, o santuário do Morro de São José virou tema de um samba gravado por Zeca Pagodinho. “Tua capela é tão bela/ Enfeita o morro/ Mas quem te pede socorro/ Não é só quem vive lá”, dizem os versos escritos em parceria com Beto Sem Braço.
Nos muitos anos em que bati ponto na festa do 1o de maio, a cena era essa mesmo. Moradores das partes mais abonadas do bairro fazendo suas preces e seus agradecimentos lado a lado com a turma que habitava o morro.
Um dia meu tio-avô avisou que não poderíamos cumprir nosso rito anual. Omitiu o real motivo, preferiu recorrer a uma desculpa qualquer. Não demoraria até que eu descobrisse: o bicho estava pegando no São José. E nunca mais subimos suas escadas.
A cisão que se deu, nesse momento, espelhava em caráter particular uma dimensão global. Como viria a entender com o passar do tempo, o Rio de Janeiro é cidade que não se conhece, nem tem o menor interesse nisso. Se já teve, perdeu. E o desconhecimento se transforma em medo na rapidez com que se aperta um gatilho. Quando a favela só nos chega com a estampa do armamento pesado, ou da droga que é a turma do asfalto que majoritariamente consome, não há espaço para modulações.
Há cerca de cinco anos, desenvolvo um projeto no Complexo da Maré, ao lado da jornalista e curadora de arte Daniela Name. O Complexo fica às margens da Avenida Brasil e reúne 16 favelas. Nosso trabalho tem duas frentes. A primeira é ajudar a equipar a Biblioteca Lima Barreto, que atende os moradores. A segunda, promover aulas abertas sobre os livros que cairão na prova da Uerj, a universidade mais procurada pelos alunos do pré-vestibular comunitário.
Na ocasião em que aconteceria a aula sobre Dom Casmurro, fui acordado com a notícia de que o chefe do tráfico da Rocinha – outro enorme conjunto de favelas do Rio – estava escondido na Maré. Havia, consequentemente, uma ocupação policial no local. Assim que recebemos a notícia, telefonamos para as coordenadoras do curso, querendo saber se a atividade poderia ser realizada. Elas responderam que sim, já que a ocupação se encerraria ainda no início da tarde e a possibilidade de um conflito entre polícia e tráfico era mínima. Comuniquei à professora convidada.
Ela jamais havia pisado numa favela e se mostrava bastante apreensiva. Combinamos, então, que eu a acompanharia na chegada à Maré. A presença do tráfico, apesar de a polícia já não ocupar as ruas, estava realmente pesada naquele dia. Nunca havia visto tantos soldados e tantas armas nas vias de entrada do Complexo. De braços dados com a professora, caminhei até o Centro de Artes, onde a aula aconteceria, tentando ao longo de todo o trajeto deixá-la menos tensa. Mas eu próprio estava apreensivo.
Já na entrada do galpão, fomos tomados pela música vinda de dentro. Um tema clássico, em alto volume. Logo veríamos que embalava os passos de balé de vinte ou trinta meninas. Todas pretas. Elas dançavam, concentradas, felizes, alheias ao cenário externo. Aquelas meninas tocavam suas vidas. Apesar da falta de grana e de assistência do poder público, apesar da opressão da polícia, do tráfico ou da milícia. Apesar de.
Recolhido no banheiro, derramei algumas lágrimas em silêncio. Os nomes de Bentinho, Capitu e Dona Glória logo ecoariam pelo Centro de Artes, mais de 100 pré-vestibulandos a debater com verve e inteligência o romance de Machado de Assis. Sem topar a silhueta que o olhar de fora costumava legar, pegando o destino com as próprias mãos. “É nós”, eles diziam sem precisar dizer.
O crítico Antonio Candido escreveu que, na gênese, a obra de Machado se assenta sobre a questão da identidade. “Quem sou eu? O que sou eu? Em que medida eu só existo por meio dos outros?”. Pega a visão: é justamente disso que estamos falando aqui.