Faz pouco tempo, assisti a uma fala do professor e escritor Eduardo Sterzi, cujo título era Através do espelho: do outro lado da especulação. Ele dizia que pretendia se utilizar de uma linha de divagações na tentativa de chegar, por linhas tortas, ao impossível de toda ficção, ou seja, o outro lado do espelho.
Ele abria as suas colocações a partir de uma narração da sua memória dos parques de diversão numa cidade litorânea onde costumava passar férias. A descrição dele passou logo a ser a minha quando, ao caracterizar os brinquedos precários e perigosos, ele falava também sobre o parque que aparecia miraculosamente no meio de Guarani durante o mês de agosto. Crucialmente, o ponto distinto entre o parque que ele descrevia e o parque de Guarani era a tenda dos espelhos. Aquele espaço que promove nossos reflexos de forma grotesca, exagerada, improvável e que, talvez, seja a forma mais fiel de como nos veem os outros.
Mais tarde, fui visitar um desses lugares e já pré-adolescente, ria daquelas imagens, aliviada por não serem as que eu via para mim em dias de autoconfiança, naturalmente. Nesse espetáculo, o distanciamento momentâneo de nós mesmos promovido pela passividade de apenas observar funcionava como a garantia da performance. Afinal, nada me trazia mais pânico do que ter que me esconder para não ser chamada para o centro do picadeiro em algum circo quando palhaços sem graça nenhuma buscavam exatamente o mais tímido para um suporte.
Uma das atrações desses parques de norte a sul do país era a mulher gorila, cuja transformação tinha uma dinâmica e rapidez opostas à performance do sujeito descrito por Kafka em Um artista da fome. Se no conto de Kafka, o pingar dos dias e a presença performática ininterrupta reduziam quase ao zero o impacto dramático da mudança de imagem do artista, na mulher gorila, as sessões duravam quinze minutos – tempo suficiente para que eu e meus amigos presenciássemos, de forma interativa, um corre-corre, uma fuga desesperadora para fora daquele trailer onde o pior acontecia: uma mulher de quimono de cetim vermelho passava a portar expressões de quem sentia dores físicas, emocionais e num conflito identitário, entre luzes apagadas e flashes, crescia-lhe uma barba, trocava de cabelo, os dentes vampirescos tornavam-se visíveis e o monstro ia se materializando a nossa frente. A mulher era, então, um gorila. Entre os barulhos de cadeado e o bater das grades da jaula, um narrador dizia que ela queria sair, ela ia sair, ela estava saindo. Nesse momento, as portas do trailer eram destrancadas e todos nós fugíamos de um medo perturbador.
Um dia, um dos nossos amigos que era filho dos donos da pensão, nos contou que a mulher gorila almoçava durante toda a temporada na casa dele. Depois da aula, chegamos a ir algumas vezes na pensão, mas nunca a encontramos. O que víamos era uma mulher acompanhada por alguns homens. Nosso amigo mentia diariamente.
Anos depois, outra mulher numa jaula imaginária tomou conta do meu juízo. Causou menos medo e muito mais espanto. O teatro da cidade fez uma temporada de um monólogo de Clitemnestra. Se cinquenta apresentações aconteceram, a cinquenta apresentações eu fui. Sou de repetições, não nego, até que me exausto e mudo o rumo por completo sem me lembrar muito da intensidade de antes. Lá da plateia, o cenário simples: uma banheira e a perna do filho do marceneiro da cidade para fora. Clitemnestra entrava e dizia: “Matei esse homem. Matei com uma faca dentro de uma banheira”. E desenvolvia sua espécie de defesa a partir das traições de Agamenon, mau marido que trouxe com ele a amante que tinha “olhos doces como as tortas de amêndoas feitas com mel”.
Durante a semana, eu frequentava a casa da minha amiga. Pelos cômodos a irmã dela, atriz. Se eu dissesse que via Clitemnestra penteando os cabelos, mentiria como mentiu o meu amigo da pensão. A nossa sorte são os espelhos retorcidos, essa realidade imaginária.