🔓 Atenta e forte, distraída e viva

Talvez seja um desequilíbrio químico do cérebro, mas tenho a convicção de que a felicidade é inevitável para certo tipo de gente
05/01/2021

Todos os dias, eu presto atenção se sinto o gosto do café. O que me motiva é uma leve — mas não infundada — paranoia em meio aos altos números de contaminação por coronavírus na cidade onde vivo. Dos meus amigos que tiveram ou estão se recuperando, todos perderam, em alguma medida, o olfato e o paladar. Os artigos científicos confirmam a recorrência desse sintoma peculiar, embora não saibam explicar exatamente suas razões. Então, todas as manhãs, eu sinto o amargo do café e penso: ótimo, ainda não chegou a minha vez.

Todos os dias, eu presto atenção se sinto o gosto do café. A partir daí, depois do instante em que eu constato que estou viva e com saúde, a vida tem sido só seguir vivendo. Tracei zero resoluções para o ano de 2021 porque o ano passado não deu nem chance para as resoluções que nasceram com ele. Mas me mantive viva, com saúde, com amor, com um teto sobre a minha cabeça e, de modo que nunca saberei explicar, terminei uma tese de doutorado. A única coisa que eu espero desse ano recém-iniciado — esse ano em que Porto Alegre decidiu priorizar a economia e não as pessoas, ano em que termina a minha bolsa do CNPq e vou me unir aos milhões de brasileiros desempregados que se multiplicam em ritmo pandêmico —, a única coisa que eu espero é me manter viva, com saúde, amor e teto.

Todos os dias, eu presto atenção se sinto o gosto do café. Eu passo um excelente café e isso me faz lembrar de que, apesar de todas as frustrações, ainda mantenho intactos alguns talentos. Eu tomo meu excelente café e penso: vai ficar tudo bem. Porque entre meus grandes talentos estão o de, há trinta e cinco anos, considerar que, de um jeito ou de outro, as coisas tendem à calma; o talento de cultivar laços afetivos que superam o tempo e a distância; e ainda o de cair na felicidade após a mínima distração. Talvez seja um desequilíbrio químico do cérebro, mas tenho a convicção de que a felicidade é inevitável para certo tipo de gente. É obsceno dizer isso em meio a uma tragédia coletiva, mas o que eu quero dizer é: ando triste, meu café é adoçado apenas por melancolia, sinto uma raiva de proporções continentais quando olho para este país, mas eu sei que, lá no fundo de mim, reside uma bolota de felicidade que aguarda, com paciência e atenção, os momentos em que ela poderá se manifestar.

Todos os dias, eu presto atenção se sinto o gosto do café. Enquanto seguro a xícara, observo as plantas na área de serviço e me sinto feliz. Algumas delas quase morreram em 2020, mas, assim como eu, estão vivas e continuam. O cróton de folhas espiraladas ficou quase nu durante o último inverno, e tive certeza de que o perderia. Na primavera ele veio renascendo. No que antes eram galhos secos, agora balançam folhas longas e verdes. Resta ainda um grande segmento de galho totalmente despido. Isso deixa o cróton estranho, pois na ponta desse galho despido, algo tenta brotar, e falha. Está frágil e talvez danificado para sempre, o cróton, mas continua.

Todos os dias, eu presto atenção se sinto o gosto do café. Enquanto seguro a xícara, observo as plantas que já não estão mais na área de serviço porque morreram em 2020. A ausência delas ecoa a multidão de pessoas mortas que nos acompanhará para sempre deste ano em diante. A ausência relembra que não é possível ser feliz por muito tempo quando se quer estar em contato com o mundo e o mundo sofre.

Todos os dias, eu presto atenção se sinto o gosto do café. É preciso estar atento e forte, diz a canção. Eu ando com desejos mais humildes. Para mim, bastará estar aqui, de pé na cozinha olhando as plantas, às vezes atenta mas com frequência distraída e, se forte, não sei, mas viva e insistindo em sentir o gosto das coisas.

Julia Dantas

Nasceu em Porto Alegre (RS). É editora, tradutora e doutoranda em Escrita Criativa pela PUCRS. É autora de Ruína y leveza (Não Editora, 2015) e organizadora de Fake Fiction: contos sobre um Brasil onde tudo pode ser verdade (Dublinense, 2020).

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