No dia 11, o Brasil voltou a registrar mais de mil mortes diárias por covid-19, o que não ocorria desde agosto do ano passado, alcançando a marca de 203.140 óbitos. Naquele mesmo dia, a grande preocupação do, deus que me perdoe, presidente Jair Bolsonaro, era com armas. Pomposamente, ele anunciou que irá assinar pelo menos três decretos destinados a flexibilizar ainda mais as regras para registro, posse, porte e comercialização de armas e munições para colecionadores, atiradores esportivos e caçadores. Só no ano passado, quase 180 mil novas armas foram registradas na Polícia Federal, 91% a mais que no ano anterior. E nosso presidente – sim, leitor (a), meu, seu, nosso – disse que esse número ainda é “pouco” e que “tem que aumentar mais, porque o cidadão de bem muito tempo foi desarmado”.
O anúncio ocorreu um mês depois de o ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Facchin, revogar, em caráter liminar, decisão da Câmara de Comércio Exterior de zerar o imposto de importação de revólveres e pistolas, antes equivalente a 20%, decisão comemorada por Bolsonaro, em rede social, com uma foto em que aparece com arma em punho num estande de tiro.
Desde que tomou posse, Bolsonaro vem tomando medidas destinadas a armar a população, uma das principais bandeiras de sua campanha. O primeiro decreto veio no dia 15 de janeiro de 2019, com a facilitação do acesso a armas a agentes públicos ligados à área de segurança, moradores de áreas rurais, moradores de áreas urbanas em estados com mais de dez homicídios por 100 mil habitantes — na prática, todos —, donos de estabelecimentos comerciais e colecionadores, atiradores e caçadores. Bolsonaro disse, em reunião ministerial no dia 22 de abril do ano passado, que ele está armando os cidadãos porque não quer uma ditadura no Brasil, pois “uma população armada jamais será escravizada”.
Na madrugada do dia 24 de maio de 1999, Bolsonaro, em entrevista ao programa Câmera Aberta, da TV Bandeirantes, declarou: “através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, se um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil (…) Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente”.
O Brasil já ocupa o primeiro lugar no ranking mundial em número de homicídios absolutos e o décimo-terceiro em números relativos; ocupa o quinto lugar em feminicídios e o primeiro em assassinatos por homofobia – e as armas de fogo respondem por 71% do total dos assassinatos. Pois bem, então, querido (a) leitor (a), por favor, responda para mim esta questão que não vai cair no Enem:
O presidente Jair Bolsonaro está armando os cidadãos de bem do Brasil para:
a) defender o povo de uma iminente ditadura comunista;
b) defender o povo contra a bandidagem e os políticos corruptos;
c) defender o povo contra ocupação da Amazônia por países estrangeiros;
d) combater à bala o vírus da covid-19;
e) todas as respostas acima.
O gabarito você encontra nas páginas dos jornais de hoje, na seção Pandemia.
Luz na escuridão
Ruy Proença, poeta, tradutor: “Em novembro de 2019 lancei um livro de poemas em prosa intitulado Monstruário de fomes, pela Patuá. No ano passado, além de escrever alguns poemas, traduzi e publiquei pela Galileu Edições, com a colaboração da também poeta e tradutora Lilian Escorel, a plaquete Línguas más, com dez poemas de Paol Keineg. No momento, estou começando a organizar o material para um novo livro. Para tanto, tenho poemas escritos desde 2014. Primeiro, pretendo fazer uma seleção ampla de textos que de algum modo expressem as questões que me ocuparam durante esse período. Depois, cortar e cortar, até ficar com o essencial. E então, pensar na organização do livro, talvez para uma edição em 2022. Paralelamente, estou trabalhando há algum tempo na confecção de um livreto de poemas infantojuvenis, que se chamará Um ninho na ponta do nariz e deverá sair pela Galileu Edições no início deste ano, com ilustrações do poeta e artista plástico Ronald Polito. Para quem se interessar, o livro da Editora Patuá pode ser comprado no site e as publicações da Galileu Edições, por meio de contato com Jardel Dias Cavalcanti no e-mail [email protected] ou no Instagram”.
Parachoque de caminhão
Não se ama a ninguém mais quando se ama.
Marcel Proust (1871-1922)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Jorge de Lima
(União dos Palmares, AL, 1895 – Rio de Janeiro, RJ, 1953)
O grande desastre aéreo de ontem
Para Cândido Portinari
Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranquila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol.
(A túnica inconsútil, 1938)