(01/12/20)
A ficção é mais rígida que a realidade. Pedi à minha sócia, colega editora, que lesse o primeiro rascunho de uma novela. Em dois momentos, ela marcou: “Ih, achei inverossímil”. Reli os dois trechos. Eram precisamente os únicos momentos do livro em que eu tinha descrito uma situação do mundo real tal qual acontecera.
Me senti punida pela preguiça de copiar a vida dos outros em vez de inventar uma nova. Bem feito. Tive que reformular os trechos assinalados pela Cacá, mas, ao fazê-lo, tive a leve desconfiança de que talvez nós sejamos as últimas criaturas que ainda se preocupam com verossimilhança.
A realidade, é claro, não poderia se importar menos, basta ler os noticiários para ver que o cotidiano se desenrola numa névoa de absurdo. Mas há um grupo que já fez esforços para ser crível e que hoje parece ter deixado a verossimilhança para trás. Que os produtores de fake news não têm compromisso com a ética é um fato auto-evidente, mas é chocante como agora eles tampouco se interessam por criar ficções que cheguem a ser pelo menos plausíveis.
Vivo em Porto Alegre, cidade que nas eleições municipais teve uma candidata de esquerda no segundo turno. Primeiro, correu a história de que ela teria articulado a facada contra Bolsonaro quando ele concorria à presidência. Em outubro, circulou o boato de que ela teria feito fotos com uma foice e um martelo de brinquedo para o Dia das Crianças (vá lá, esse disparate pelo menos é engraçado).
Só posso pensar que essas histórias não são inventadas para que se acredite nelas, mas apenas como alguma forma de entretenimento de ódio, se é que essa categoria pode existir.
Não é apenas a falta de verossimilhança nas mentiras, mas também o comportamento inverossímil de pessoas reais diante dessas incoerências. Manuela d’Ávila foi a mais atacada entre todas as candidatas do país, segundo monitoramento de violência política de gênero nas redes. Alguns usuários desejavam a morte da candidata — um desejo bastante grave sob qualquer circunstância — e depois xingavam: “Safada”. Que tipo de ataque é esse que pede morte e chama de safada?
Vocês imaginem se eu crio um personagem que, aos berros, se dirige a uma mulher e diz “você tem que morrer, sua… sua… safada!”. Ridículo. A Cacá nem falaria mais comigo se eu apresentasse uma coisa dessas. E, ainda assim, “safada” esteve entre as mais frequentes ofensas direcionadas à Manuela. Para outras candidatas mulheres, apareceram também “feia” e “gorda”. Não sei nem o que comentar.
Estou pinçando os exemplos mais patéticos, é claro. Há centenas de outros ataques apenas virulentos. Mas é espantoso que o ridículo fique tão bem inserido no mundo real, mas seja uma pedra no meio do caminho capaz de quebrar o pé da escritora.
No meu rascunho da novela, uma das cenas era sobre um casal de namorados que só se via aos sábados de tarde por uma série de motivos um pouco tolos, mas motivos que eu tinha roubado de um caso verídico. Isso em nada comoveu minha amiga. “Inverossímil”, ela foi categórica, e tive que aceitar porque ela é especialista. Já faz cinco anos que a Cacá narra para um ávido grupo de amigos as desventuras amorosas de sua vizinha. Há cinco anos, nós dizemos que ela tem que botar essas loucuras num livro. E ela sempre lamenta: “Não dá, ninguém ia acreditar”.
A cada ano vivido nesse Brasil, que parece operar sob efeito de alucinógenos, me pergunto mais e mais se não somos nós, artistas, as figuras conservadoras do momento, tentando se agarrar à coerência que o resto do mundo já descartou sem cerimônia. Quando o país estiver sendo governado por crustáceos, os robôs tiverem fugido dos humanos e a gente estiver se alimentando de plástico com agrotóxico, prevejo que ainda estaremos, a Cacá e eu, editando nossos trabalhos para que pareçam mais reais que a realidade.