Não terei assunto. Medo de gente que escreve. Com o tempo, ele é domado. Calma, sempre há o que dizer. Assunto cai do céu e brota em árvore. Assunto é como aquela plantinha valente que se enraÃza e cresce no meio da área cimentada. Até no asfalto dá. O segredo é manter os ouvidos atentos. Os olhos também, mas nem sempre eles ajudam. Podem distrair ao invés de alertar. Os ouvidos captam o que as pessoas dizem, em mÃnimas frases ou em discursos inteiros. Uma sÃlaba em destaque, uma afirmação de uma linha, uma notÃcia excepcionalmente boa ou má, bizarra ou simplória. A vida dos outros. A vida da gente, que se parece demais com a dos outros. Escrever é recontar. Dificilmente é outra coisa. Linguistas conhecem Bakhtin, e era ele que dizia que estamos numa corrente de ditos e dizeres, somos elos, estamos nos nós, laços, pedaços. Outro dia, lendo a poesia de uma poeta famosa, ouvi outra poeta famosa. Não era explÃcito nem admitido, talvez, embora a mais jovem fosse reconhecidamente admiradora da mais velha. Mas não era só. É uma espécie sofisticada e legitimada de copiadora, ecoadora, embora nem todo mundo possa ouvir o contracanto de uma nas linhas da outra. Isso a escola diz que ensina, mas é mentira. Escola ensina metalinguagem, que a gente mal aprende. Para saber é preciso ler. E ler num frenesi danado, quase só encontrado e desenvolvido extramuros.
Que coisa feia esta menina preocupada em ter assunto, fazer poema, escrever crônica (!) enquanto o mundo se esboroa diante de nós. O planeta tem espasmos de calor e de frio, a Bahia e as Minas escorrem pela correnteza violenta, escorregam terras, as pessoas morrem de doenças invisÃveis, homens e mulheres ficam sem ar, jeito horroroso de morrer, nunca ninguém quis. Uma guerra faz clarões no horizonte e mata crianças em seus berços. O clima enlouquece, se vinga, o paÃs numa miséria intelectual e polÃtica sem precedentes, um verme muito pior do que um vÃrus, eles competem quem asfixia mais. O fim do mundo ensaiando acontecer, os dinossauros achando que está pior desta vez, a censura dando as caras, a ignorância devastando os futuros possÃveis, e essa menina mimada querendo silêncio para escrever três versos, estrofes, calculando as rimas, de dentro, de fora, lendo prefácios, tentando copiar sutilmente poetas de outros tempos, os bem-sucedidos, a ver se cola, a ver se alguém a enxerga. Não enxergará, claro.
Que angústia suja esta, que atividade dispensável, que situação. Vem aà uma eleição lamacenta, mais uma barragem expulsará moradores que jamais serão indenizados, mais cadáveres submersos e cheios de lama nas narinas, mais empresas monopolizarão alguma coisa de que precisamos muito, o gás de cozinha com três dÃgitos, as bandeiras escorchantes da conta de luz, a água pela hora da morte, a água paga, essa que escorre do céu e é capturada pelos homens bem-sucedidos, a ciência que interessa, a ciência sem prioridade, os jornais sempre têm assunto. Que inveja! Que coisa feia esta menina sentir inveja. É pecado, de uma breve lista de sete terrÃveis deles. (Sabemos: são muito mais que sete. O compilador é que desistiu.) Ela peca. Os jornais sempre têm assunto, embora não se ocupem de fazer literatura. E a literatura, à s vezes ensinam na escola, não se ocupa disso, desses assuntos feios e frios, usando palavras fortes. Não cabe à poesia, por exemplo, provocar o debate, denunciar ou apontar. Poesia vem amenizar, quem sabe? É o que ensinam por aÃ, bastante. Faltará assunto à s poetas, já que o mundo anda tão convulso e revolto? De onde esse povo que escreve tirará ideias para distrair a humanidade de sua desgraça diária? Alguém sabe dizer? Alguém confirma, antes que a água barrenta invada nossa casa?