🔓 Acontecem coisas demais?

A pandemia estabeleceu uma etapa que a Jornada do Herói não prevê: a do hiato de acontecimentos, gerando uma nova — e estranha — percepção do tempo
Ilustração: Oliver Quinto
21/01/2022

Me dei conta de que não sei mais qual é uma proporção razoável de acontecimentos por semana numa vida comum.

Depois de certo adiamento por conta da pandemia, estou prestes a me mudar para um outro apartamento. Era um lugar que precisava de reformas e consertos e, embora todos saibamos que as obras sempre duram o dobro do tempo que elas prometem durar, ando espantada com a quantidade de eventos que sucederam nesse período que deveria servir apenas para trocar umas telhas, pintar tudo e arrumar portas.

Um buraco na parede da sala, ghosting de prestadores de serviços, um pedreiro confundido com outra pessoa e quase linchado na rua por engano, um ajudante com gripe, cano estourado no vizinho, curto-circuito no ventilador de teto, um prestador de serviço denunciado na delegacia, estragos causados pelos temporais, vidros quebrados por outro prestador de serviços, novo buraco na parede da sala.

Tento me lembrar de 2019: a vida era tão cheia de acontecimentos?

Semana passada falei para um grupo de oficineiras sobre a Jornada do Herói, conforme esquematizada pelo Christopher Vogler para ajudar na criação de roteiros cinematográficos em Hollywood, mas baseada nos estudos de Joseph Campbell sobre estruturas narrativas e arquétipos que se repetem em diferentes lugares do mundo através dos tempos. Na versão do Vogler, são doze etapas que constituem a jornada, começando no Mundo Comum, ao qual se segue o Chamado à Aventura, passando por incontáveis desafios até os passos se encerrarem no Retorno com o Elixir.

É o que mais comumente chamamos de arco narrativo: alguém sai de um estado inicial, enfrenta obstáculos, passa por uma transformação e retoma sua vida a partir de outra perspectiva. Pode ser Luke Skywalker conquistando a paz no universo, pode ser Riobaldo alcançando um maior entendimento de seu amor por Diadorim.

Serve para histórias de ficção e serve, é claro, para a vida.

Na Jornada do Herói, porém, não existe nenhuma etapa que se assemelhe a um hiato de acontecimentos, ou um limbo de eventos objetivos, que é como a pandemia às vezes se desenha na minha linha do tempo mental da vida. Mesmo na versão original do Campbell, na etapa do Ventre da Baleia, há um profundo amadurecimento do herói.

Não há nenhuma, absolutamente nenhuma etapa em que o herói fica em casa e espera. Os heróis não se entediam, não ficam parados, não usufruem de seu privilégio de prestador de serviços intelectuais que pode trabalhar de casa, comprar máscaras PFF2 para ir ao mercado e suspender todas as outras atividades na rua.

Esse hiato da pandemia fica fora da jornada e, talvez por isso, pareça tão fora do tempo.

Até onde sei, nunca tive Covid. O custo foi essa sensação de afastamento da corrente imparável de acontecimentos encadeados que tece a vida. Mas, se a pandemia realmente criou um tal de novo normal, talvez a etapa que virá depois da Ômicron (se certas teorias se confirmarem) seja o Chamado à Aventura. A diferença é que estou prontíssima para pular a etapa da Recusa ao Chamado. Vem ni mim, aventura.

Julia Dantas

Nasceu em Porto Alegre (RS). É editora, tradutora e doutoranda em Escrita Criativa pela PUCRS. É autora de Ruína y leveza (Não Editora, 2015) e organizadora de Fake Fiction: contos sobre um Brasil onde tudo pode ser verdade (Dublinense, 2020).

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