No colĂ©gio Nossa Senhora da Piedade, ali pelo começo dos anos 1980, os meninos sĂł iam ao banheiro em grupo. NĂŁo, nĂŁo pense em meinha, troca-troca e que tais. Era por medo mesmo. Quem fosse sozinho corria o risco de encontrar a temida Loura do Banheiro, com seu vestido branco, a boca vazando sangue e chumaços de algodĂŁo nas narinas. Ela aparecia caso dĂ©ssemos descarga, chutássemos a privada, falássemos palavrĂŁo ou batĂŞssemos a porta do sanitário. Todos conhecĂamos os cĂłdigos.
Cheguei a imaginar que a mĂtica figura pertencia ao passado de homens e mulheres hoje quase cinquentões. Que nada. Ontem mesmo a mĂŁe de Lia me telefonou para informar que, no colĂ©gio da nossa filha, o mito da Loura chegou chegando. As crianças do primeiro ano andam apavoradas. AtĂ© em casa temem fazer nĂşmero um — ou, pior, nĂşmero dois — sem companhia. NĂŁo basta ser pai, tem que participar, já diz o bordĂŁo.
Muitas lendas urbanas como essa aos poucos ganham versões distintas, dependendo do lugar ou da época. No caso da Loura do Banheiro, há uma origem comum — e catalogada.
Sua gênese vem de uma história que efetivamente aconteceu, perto do fim do século 19, na cidade paulista de Guaratinguetá. Aos 14 anos, a menina Maria Augusta de Oliveira Borges fora obrigada pelo pai, o Visconde de Guaratinguetá, a se casar com o conselheiro Dutra Rodrigues. Ele tinha 35.
Quatro anos depois, Maria Augusta conseguiu escapar da prisão matrimonial. Vendeu suas joias e fugiu para Paris. Morreria por lá, aos 26, por motivo nunca revelado. Alguns especulam que teria sido de raiva, doença que se alastrou pela Europa naquela temporada. O que se sabe é que, no traslado do corpo para o Brasil, o caixão foi violado por criminosos. Buscavam objetos de valor da jovem falecida, mas ainda nobre.
Já na cidade natal, seu cadáver ficou exposto em um dos cĂ´modos da mansĂŁo da famĂlia, dentro de uma redoma de vidro. Como o tĂşmulo demorava a ficar pronto, a mĂŁe chegou a cogitar nĂŁo fazer o enterro. Acabou, porĂ©m, topando o sepultamento.
O tempo se passou, a casa do clĂŁ foi vendida e transformada em escola pĂşblica. Que, passada pouco mais de uma dĂ©cada, seria destruĂda por um incĂŞndio. Testemunhas do acidente contaram que, enquanto as chamas consumiam o imĂłvel, o som de um piano era ouvido. Instrumento que Maria Augusta dominava como poucos.
NĂŁo demorou atĂ© que começasse a correr o papo de que seu espĂrito continuava a circular pelos corredores, abrindo as torneiras dos banheiros para matar a sede — a desidratação Ă© uma das consequĂŞncias da raiva — e suplicando aos vivos que enfim a enterrem. Ainda que o sepultamento tenha efetivamente acontecido. “Publique-se a lenda”, recomendaria Dutton Peabody, o jornalista notabilizado por John Ford no filme O homem que matou o facĂnora.
A Escola Estadual Conselheiro Rodrigues Alves funciona em Guaratinguetá atĂ© hoje. E o espĂrito da Loura do Banheiro, se um dia andou mesmo por lá, parece ter gostado do ambiente estudantil. Espalhou-se pelos colĂ©gios do Brasil inteiro, para infortĂşnio das crianças.
As compleições fĂsicas sĂŁo as mesmas, mas a evocação mudou. Agora, contam as meninas do primeiro ano, o espĂrito sai do espelho quando sĂŁo pronunciadas algumas palavras especĂficas. E, ao chegar, pede: “Me salvem!”.
Expliquei à Lia que o fantasma da Loura não existe. “Eu sei. Mas às vezes a gente sabe que uma coisa não existe e ainda assim tem medo”, ela respondeu. Por via das dúvidas, melhor não mexer com quem está quieto.