Pode ser que eu esteja apenas ficando velho e a observação que farei a seguir nĂŁo passe de um cruzado de direita no queixo, desferido pela nostalgia, esse sentimento traiçoeiro que, como Muhammad Ali, se aprochega leve como uma borboleta, apenas para picar a nossa consciĂŞncia com a crueldade de uma vespa. É bem possĂvel que a memĂłria afetiva esteja me traindo e incluindo mais um corno em sua longa lista. É mais do que possĂvel. Na verdade, Ă© bastante provável — e espero que os leitores mais jovens saibam me perdoar. Mas vocĂŞs nĂŁo acham que já fomos melhores ao lidar com as nossas divergĂŞncias?
Eu sei que corro o risco de estar lembrando de coisas sob influĂŞncia (no sentido lisĂ©rgico) da saudade, mas eu realmente poderia falar horas sobre tempos em que a gente discordava em quase tudo, de partido polĂtico a clube de futebol, passando por marca de cerveja, ketchup na pizza, escola de samba, religiĂŁo e TitĂŁs versus Paralamas sem jamais chegar perto de brigar. Lembro que na eleição de 1989 eu tinha um monte de amigos que votaram no Brizola, outros tantos no Lula, muitos no Collor, alguns no Covas e atĂ© no Ulysses. Juro que conheci um cara que votou no Caiado e outro no Aureliano. Fora os iconoclastas que foram de EnĂ©as. SaĂamos para beber e falar de polĂtica, sempre com uma mistura deliciosa de entusiasmo e bom humor. Apurados os votos, voltávamos todos a fazer o que sempre fizemos: meter o pau no governo. Ter que escolher entre apoiar um polĂtico, ou mesmo uma ideologia, e perder um amigo era algo fora de questĂŁo. “Vem cá, seu comuna safado, vamos tomar uma gelada!” “SĂł se vocĂŞ pagar, reaça pĂŁo duro!” No final, a conta era devidamente rachada.
Eu nĂŁo sei dizer o que aconteceu e nem quando começou, apenas sei que se passaram mais de cinco e menos dez anos desde que esse negĂłcio de ter razĂŁo passou a ser mais importante do que rir da vida. A polĂtica parece ser parte central da questĂŁo, mas o cisma vai alĂ©m dela: de certa maneira, Ă© como se as pessoas nĂŁo se sentissem mais estimuladas a conviver com diferenças e contradições — duas coisas que figuram com destaque na lista daquilo que nos torna humanos.
Eu estava pensando nisso numa noite vadia de segunda-feira, daquelas em que nada parece ser mais atraente — ao menos para um sujeito de 55 anos — do que ir atĂ© estante com velhos discos de vinil, passear o olhar e as saudades pela coleção, escolher uma bolacha e, apĂłs um vigoroso sopro de trompetista para arrancar a poeira de dĂ©cadas, colocar o anacrĂ´nico objeto para tocar em um nĂŁo menos anacrĂ´nico equipamento de som. O LP que escolhi era de uma banda nacional do inĂcio dos anos 1970: Sá, Rodrix e Guarabira. A primeira faixa que ouvi tinha o sugestivo tĂtulo de Ama teu vizinho. E a letra começava assim: “Ama teu vizinho como a ti mesmo. Mesmo que ele faça barulho, mesmo que ele acorde as crianças de madrugada. Ele tambĂ©m gosta de silĂŞncio e paz, ele tambĂ©m quer sossego. Mas acontece que ele vive num horário diferente do teu”.
Era um disco bem antigo. Basta dizer que outro verso da canção diz assim: “Ama teu vizinho como a ti mesmo, mesmo que ele seja um grilo na comunidade”. NĂŁo sei o que Ă© mais bocomoco: a gĂria grilo, o conceito ripongo de comunidade, ou a expressĂŁo bocomoco, que acabo de usar. A expedição Ă estante de vinis veio a calhar, já que a guerra civil ideolĂłgica instalada nos Estados Unidos, onde moro — mas tambĂ©m em nossa Pindorama radicalizada —, atiçou minha vontade de entender a antropologia da vizinhança.
Há muitos anos, quando ciscou pelo Brasil para fugir do inverno portenho, o grande escritor argentino Adolfo Bioy Casares se aventurou por alguns dos nossos programas de entrevistas. Num deles, perguntado sobre o porquĂŞ de tanta rivalidade entre Brasil e Argentina, respondeu que nĂłs, seres humanos, somos assim mesmo: preferimos odiar quem está mais Ă mĂŁo. NĂŁo brigamos com a sogra do nosso amigo, mas com a nossa. Da mesma forma que nĂłs, escritores, brigamos muito com a crĂtica, mas brigamos ainda mais entre nĂłs mesmos. SĂł posso concordar com Casares. Realmente, fora alguns modelos de vestido da Björk, jamais nutri grandes antipatias pelos islandeses. TambĂ©m nĂŁo chego a ter particular implicância com os times de futebol de Burkina Faso ou com os halterofilistas do UzbequistĂŁo. No entanto, botem uma bola de futebol para rolar na grama e uns cabeludos com camisa celeste e branca do outro lado e, creiam-me, vocĂŞs conhecerĂŁo o lado mais sinistro deste cronista. Tanto que escrevo isto e já me apresso em corrigir: concordo com Casares — apesar de ele ser argentino.
Encerro esta pequena crônica sobre a tolerância com uma fofoca de vizinhos. Quando ainda morava em apartamento, havia um cara no andar de cima que quase diariamente dava um ataque cinematográfico de gritos e xingamentos, entre quatro e cinco da manhã, horário no qual sua esposa costumava voltar da rua depois de encher a cara. Cansado de ser acordado pelo quebra pau e de acompanhar o fabuloso progresso que meus filhos vinham fazendo na ancestral arte dos palavrões, decidi conversar com o tal vizinho. Na verdade, não falei com ele, mas com a esposa: “Minha senhora, não tenho nada a ver com a sua vida e coisa e tal, mas as crianças precisam dormir, sabe como é… Será que não daria para a senhora voltar para casa um pouquinho mais tarde? Quebraria o maior galho”. Dali em diante a compreensiva mulher passou a chegar da farra às 6 da manhã, e o meu serviço grátis de despertador — o quebra-pau do 702 — jamais decepcionou.
A convivĂŞncia pacĂfica Ă© sempre possĂvel, mesmo nas situações mais improváveis. Agora, preciso encerrar o texto porque a campainha acaba de tocar. É o vizinho da casa ao lado, reclamando que a mĂşsica que estou ouvindo Ă© muito esquisita, muito latina e, principalmente, muito alta. Ele, definitivamente, deve viver em um horário diferente do meu.