🔓 A tristeza como um pássaro

A pandemia fez da dor uma presença constante nas casas e mentes; é preciso deixar as janelas abertas e tentar fazer com que ela encontre a saída
Ilustração: FP Rodrigues
02/02/2022

Num dos poemas do livro Vívido, publicado em 1997, Pedro Amaral fala da tristeza como um pássaro. Não qualquer tristeza, mas aquela que, repentina, nada é capaz de animar ou aplacar. Que “não é amarga, não tem ranço/ não empesta o ar nem arrasa”, diz. E bate as asas, casa adentro, sem saber como escapulir.

Penso nos versos de Amaral ao ver o pássaro à minha frente, aflito, colidindo com as paredes brancas do apartamento. Não sei como entrou aqui, se num voo sem mira, uma desorientação passageira, simplesmente por cansaço. Em meio ao calor opressivo, sinto o vento glacial que se desprende do movimento de suas pequeninas asas. Não há alívio, contudo.

Em Saturno nos trópicos, o médico e escritor Moacyr Scliar parte da Peste Negra, que devastou a Europa no século 14, para tratar da relação entre pandemia e melancolia. Peço perdão pela rima inevitável e sigo em frente. “A peste é, inquestionavelmente, uma doença. A melancolia às vezes é doença e às vezes não é”, pondera Scliar.

Mas assim como a peste, adverte ele, a melancolia pode se disseminar. Uma espécie de “contágio psíquico”, que domina a conjuntura emocional “em um grupo, um lugar, uma época”.

Desde o começo de 2020, a morte tem nos cercado. É claro que, se pensarmos de forma pragmática, ela sempre esteve conosco. Em algum momento, iremos ao seu encontro, ainda que contrariados. Mas essa presença costumava ser mais etérea.

A pandemia de Covid-19 banalizou a morte. Estamos todos, há dois anos, flutuando no espaço, imersos no vácuo da gravidade zero.

À medida que a vida se recompõe, devagar, buscamos o oxigênio. Hoje há vacinas, se morre menos, mas as perdas e a experiência da solidão estão inexoravelmente inscritas na pele.

Não conheço quem tenha atravessado esse vasto inverno sem marcas. Fobias, paranoias, crises de ciúme, depressão. Ou, como nos versos da Adélia Prado, não haja perdido em algum momento a poesia. Olhar para a pedra e ver só pedra mesmo.

Entre altos e baixos, vamos levando. Estamos vivos, afinal.

Às vezes, essa flor dúbia que é o mundo nos oferece sua pétala mais delicada. Um cafuné. Então o pássaro invade novamente a casa. Refaz seu revoar estabanado e buliçoso pelos cômodos, à procura de uma saída. Deixemos as janelas abertas.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (PrĂŞmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (PrĂŞmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho