Lembro-me de Caio F. dizer, certa vez, que não se deveria falar de paixões para não se perdê-las. Embora o escritor fosse afeito a magias e quebrantos, não se tratava, ao menos naquela ocasião, de nenhuma crendice. Seu ponto de vista era que a enunciação falseava a coisa e distanciava o objeto da paixão pela necessidade imperiosa de acreditar-se verdadeiramente apaixonado.
Pois bem, ciente do risco, confidencio: possuo uma paixão. E, não satisfeito, acrescento: em determinadas noites, passados mais de cinco anos de convívio, acreditem ou não, gostamos de nos sentar no sofá da sala e, enquanto assistimos a um filme ou capítulo de série (seja drama, policial ou fantasia), cada um munido com seu próprio balde de pipoca, entrelaçamos as mãos.
Não ignoro a possibilidade de tal gesto, na visão da maioria das pessoas, beirar a cafonice, ao romantismo barato. Porém, ele é tão natural para nós que não me incomodo com possíveis julgamentos. Os tempos já estão excessivamente rígidos, sobretudo em nossas vidas políticas, para nos sujeitarmos a intromissões fúteis na ordem privada dos dias.
Falando em futilidade, acompanhei involuntariamente a comoção (e, em menor grau, o desprezo) pela troca de monarcas do Reino Unido. A sensação, depois de ouvir os entrevistados, era que julgavam Elizabeth II “imorrível” da mesma forma que, em nossos trópicos, há quem julgue o mandatário dono de uma virilidade à prova de falhas. Para azar da República, a mais significativa falha reside aí. A distância entre o que se enuncia e o que se consuma na paixão. Ou no que se perdeu e não se tem coragem para admitir. Algo falso e com data de vencimento tão curta quanto à de um meme. Vive-se mais a paixão pela crença de se supor apaixonado.
Na esteira das comparações entre Velho e Novo Mundo, cabe citar o livro autobiográfico de Helene Hanff, 84 Charing Cross Road, adaptado para o cinema por David Hugh Jones e que, no Brasil, mesmo o filme ganhando o carimbo de cult, recebeu o mais infame dos títulos para pobres plebeus que, como eu, não suportam spoilers, Nunca te vi… Sempre te amei.
Trata-se de uma história de amor platônico nascida da paixão pela literatura. O romance é construído a partir da troca de cartas entre a escritora americana e Frank Doel, um livreiro inglês especializado em publicações raras de segunda mão, compreendendo um período que antecede a coroação da rainha Elizabeth II e avança até meados de 1969. Helene planejava conhecer Frank e a livraria pessoalmente, mas é impedida de viajar após ter boa parte de suas economias comprometida com o pagamento de um tratamento dentário.
Eu vivi algo ligeiramente parecido. Numa tarde de domingo, assistindo à quinta temporada de Cold Case, mãos entrelaçadas, pus um punhado de pipoca na boca e, após mastigar, senti um tranco no lado esquerdo da boca, seguido de um som forte e seco. O custo da coroa dentária varreria todos os direitos autorais recebidos pelo meu último trabalho e, consequentemente, o ansiado final de semana na ilha. Contudo, não me desesperei. Apertei o botão do play no controle remoto, passei a mastigar a pipoca do lado direito da boca e aconcheguei ainda mais a mão descansada sobre a minha.