🔓 A sonda do Morengueira

A malandragem de um malandro entre aspas, que eternizou o Rio de Janeiro de seu tempo com muito humor e poesia
O sambista Moreira da Silva
10/03/2021

O show de Moreira da Silva cumpria fielmente o roteiro e se desenrolava sem grande alarido no palco de um cine-teatro do Méier naquele ano de 1936. Foi quando ele começou a cantar o samba Jogo proibido. Sem cerimônia, no meio da canção, Moreira se desviou da letra de Tancredo Silva sobre o cotidiano de um típico malandro carioca e mandou, de improviso: “Eu meto ácido no nariz do otário/ O homem cai e diz: ‘Morengueira, eu vou morrer’”. Foi aplaudido de pé.

“O petróleo está aqui. Vou meter a sonda”, contaria, muitos anos depois, em entrevista a O Pasquim. Justificava por quê, após o início de carreira dedicado a pontos de macumba e sambas-canções, decidiu direcionar de vez seu repertório ao samba-de-breque. Nesse subgênero sincopado do samba, em que comentários improvisados (e falados) são encaixados entre as estrofes, Morengueira acabaria se tornando mestre.

O artista completaria 119 anos no próximo 1o de abril, caso a morte não o tivesse colhido em 2000. Enquanto esteve por aqui, por intermédio de canções como Na subida do morro, Fui ao dentista Acertei no milhar, ele fez a crônica musical da cidade. Cantou personagens e cenários do Rio de Janeiro de seu tempo, quase sempre com humor. Bom exemplo é Cidade lagoa, na qual opta pela antiexaltação na abordagem do problema crônico dos alagamentos: “Que maravilha nossa linda Guanabara/ Tudo enguiça, tudo para/ Todo trânsito engarrafa/ Quem tiver pressa, seja velho ou seja moço/ Entre n’água até o pescoço/ E peça a Deus pra ser girafa”.

Nessa linhagem, temos também Amigo urso, cujo título evoca a expressão popular comumente usada para designar a falsa camaradagem. Dirigindo-se ao tal confrade com uma irônicasaudação polar”, ele lhe cobra a antiga dívida. “Hoje estás bem e eu me encontro em apuros / Espero receber e pode ser sem juros”, diz-lhe.

Embora o Rio tenha sido o espaço preferencial nos sambas que gravou, o cantor não ficou limitado às fronteiras cariocas. A cidade de Santos e a capital paulista aparecem no hilário Morengueira contra 007, uma tresloucada trama estrelada por James Bond, Claudia Cardinale e Edson Arantes do Nascimento, “com direção do famoso diretor americano Abelardo ‘Chacrinha’ Barbosa”. Moreira leva Claudia para jogar pif-paf no Guarujá e comer pizza no Braz.

Mas seu tema principal foi mesmo o universo dos malandros, que descortinou retomando a figura consagrada por Wilson Batista e Noel Rosa nas décadas de 1930 e 1940, e que seria repaginada por Chico Buarque no fim dos anos 1970. O malandro era o protagonista da sociedade que o artista observava: aquela “que povoa os morros, as delegacias, gente humilde, mas cheia de personalidade e bossa”, como observa o crítico Lúcio Rangel.

Moreira versou sobre as rodas de baralho (Jogando com o capeta), a gafieira (Olha o Padilha), o jogo do bicho (Deu o bode pra polícia) e os pequenos golpes (Camelô na cidade). Também catalogou gírias, como “batente” (trabalho), “Justa” (Justiça), “caroço” (bola de futebol), “granolina” (grana), “encruza” (encruzilhada) e “pau d’água” (bêbado).

Apesar de abordar esses assuntos com intimidade, o cantor costumava se definir como um “malandro entre aspas”. Quando incorporava o personagem do Kid Morengueira, tão citado nas músicas, vestia terno de linho S-120, gravata, sapato bicolor e chapéu de palhinha. Mas, na vida pessoal, foi indivíduo pacato e marido de almanaque, casado por 54 anos com a mesma mulher.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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