🔓 A privatização da censura

Quem exerce a censura é sempre uma escola, um jornal, uma editora, uma empresa ou uma rede social
Ilustração: João Verderame
14/10/2022

A censura voltou. Mas, em tempos de “empreendedorismo”, já não é algo feito pelo estado. Ela passou a ser praticada de forma muito mais abrangente e democrática. Já não se precisa ser “otoridade” para censurar.

Os neocensores podem ser, por exemplo, pais de crianças de uma determinada escola, grupos que gostam de um político, seguidores de alguma fé, uma turma dentro de uma empresa ou uma tropa de defensores do politicamente correto.

E a censura pode ter vários graus. Pode ser relativa a uma ou outra palavra, a uma ou outra obra, ou mesmo a um ou outro autor.

O que todos os censores têm em comum é que tentam impedir que algo seja lido, escrito ou visto. A ideia é proibir a propagação de uma ideia diferente da sua.

Os neocensores também têm em comum o fato de jamais admitirem que fazem uma censura. Estão sempre em defesa de alguma causa nobre, como um Deus, a família, a moral, a própria liberdade, os fracos e oprimidos.

Vou dar aqui um exemplo recente do que vem acontecendo no Facebook, que, mesmo em decadência, talvez ainda seja o maior propagador de ideias da atualidade.

Lá, o processo censor é simples: você lê algo que lhe desagrada (por exemplo, Lula ser chamado de “ex-presidiário” ou Bolsonaro ser chamado de “fascista”) e pede o bloqueio do texto que contém o adjetivo. Se houver muita gente pedindo isso (o que você facilmente combina num grupo de whatsapp), o texto é cortado. E a página fica proibida de fazer novas publicações por um dia. Ou por três dias. Ou por uma semana. Ou por um mês. Ou para sempre.

Com isso, o Facebook virou uma rede antissocial.

Desde janeiro de 2019 escrevo lá uma página chamada Diário do Bolso, um diário ficcional do presidente. Ela já foi suspensa algumas vezes, mas, agora, bateu o recorde. O mesmo texto foi suspenso, liberado, e depois suspenso de novo. E estou proibido de colocar qualquer novo texto na página, sem nenhum aviso, explicação ou mesmo informação sobre motivos e duração da suspensão.

O curioso é que não se tratava de um discurso de ódio, cheio de xingamentos ao inominável. Apenas narrava um sonho que ele teria tido com Angélica e Xuxa, quando as duas disseram que votariam em Lula.

Esclareço que no pesadelo não havia nenhuma tortura física, nem colocavam roupas de paquita no presidente. As duas apenas cantavam quatro versos (levemente modificados) de uma famosa música de Xuxa, chamada Lua de cristal.

A letra original (talvez você até já a tenha cantado) é assim: “Lua de cristal, que me faz sonhar/ Faz de mim estrela, que eu já sei brilhar/ Lua de cristal, nova de paixão/ Faz a minha vida cheia de emoção.”

Mas, no sonho, ficou assim: “O Lula é o tal, que me faz sonhar/ E a sua estrela quero ver brilhar/ O Lula é o tal, amo de paixão/ É dele o meu voto nessa eleição!”.

Não é nada brilhante, confesso. Mas a irritação dos bolsonaristas não foi causada pela (falta de) qualidade dos versos, mas por falar do outro candidato. E ouvir uma opinião contrária hoje em dia é algo inadmissível.

A não aceitação da voz diferente transformou o cidadão em censor. E isso é triste.

Mas é bom lembrar que, se o indivíduo pede a censura, quem a exerce é sempre uma instituição privada: uma escola, um jornal, uma editora, uma empresa ou uma rede social (que não deixa de ser uma empresa).

Instituição que, por sua vez, é dirigida por indivíduos.

Enfim, a censura (quem diria?) foi privatizada.

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

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