A minha filha me diz que sabe quando estou escrevendo um livro por conta do barulho que faz o teclado do computador.
Como? – eu quis saber.
“Quando vocĂŞ escreve livro, vocĂŞ bate as teclas por alguns segundos sem parar, super rápido. DaĂ, para durante vários segundos. Ă€s vezes, vocĂŞ para por minutos. DaĂ, volta com toda força no teclado, e várias vezes eu escuto aquele barulho repetitivo de quando vocĂŞ errou e volta pra apagar. Eu sei quando vocĂŞ está escrevendo um livro porque vocĂŞ passa um tempĂŁo pensando e errando.”
Eu postei essa conversa no Facebook, outro dia e fiquei pensando sobre os vários significados inseridos nesse diálogo. A primeira coisa que eu penso é na observação aguda da minha filha. Fiquei um pouco atônita: por que ela não se ocupava de alguma coisa dentro do mundo dela, em vez de coreografar meus movimentos no teclado? Será que se sente sozinha enquanto eu me enrolo aqui nesses afazeres entre palavras que nunca me servem por completo?
Acontece que no mundo dela estou eu. SĂŁo incontáveis as vezes que me frustro diante da apatia dos meus filhos quando começo a falar de literatura. Já me pediram, inclusive, para dar um tempo que ninguĂ©m aguentava mais ouvir sobre a limitada interpretação e aplicação de Romeu e Julieta. Já sabiam que Lady Macbeth nĂŁo Ă© a vilĂŁ que pintam. Mas eu, neste meu mundinho particular de delĂrio, continuo falando, ainda que para as paredes.
Assim eu imaginava. AtĂ© que minha filha me manda notĂcias: mĂŁe, estou te vendo, estou te ouvindo, estou te entendendo. Pode nĂŁo parecer, mas estou. A identificação do ritmo da minha escrita foi curiosa. Mas mais profundo ainda Ă© essa tradução do exercĂcio de escrever. O pensamento e o erro como minhas ferramentas inegociáveis de criação. Como pode existir autor tĂŁo seguro das suas certezas? Meu alicerce Ă© esse constante equĂvoco, uma insatisfação prolongada que, por vezes, demora tanto que acabo desistindo dela e envio o texto ao seu remetente. Minha filha parece ter acertado em cheio nessa definição. Eu mesma nunca consegui formular tĂŁo satisfatoriamente esse conceito do que Ă© escrever.
Ainda assim, essa atenção dela em relação a mim me perturbou. Há pouco tempo, ouvi um debate. Uma convidada falava da culpa que carrega como mĂŁe enquanto escolhe escrever em vez de passar tempo com os filhos. Eu que nĂŁo carrego essa culpa me senti culpada por nĂŁo sentir culpa. Quando meus filhos nasceram, eu já estava aqui. E se há sempre um ajuste meu para me entender como mĂŁe, vem existindo da parte dos meus filhos uma observação atenta para a questĂŁo de terem como mĂŁe um indivĂduo.
Outro dia minha filha queria bater papo. Achei inteligente a forma com a qual ela deu inĂcio Ă conversa: “mĂŁe, vocĂŞ já ouviu falar em Oscar Wilde? Estou lendo na escola The importance of being Earnest. Vamos falar sobre isso?”.