🔓 A palavra em campo

Uma lista de autores que ajudaram a desmistificar uma questão antiga: a dificuldade de reproduzir em texto situações e sentimentos do futebol
11/08/2021

Na noite de 2 de julho de 2008, 78.918 pessoas estiveram no Maracanã para assistir à final da Taça Libertadores. Após uma campanha até então irrepreensível, o Fluminense chegara à decisão com ares de favorito. Mas o resultado da primeira partida foi desastroso. Embalados pela altitude de Quito, os equatorianos da LDU venceram por 4 x 2. Restava ao tricolor, portanto, derrotá-los por três gols de diferença no jogo de volta.

Eu era um daqueles milhares que testemunharam o que se desenrolou no histórico estádio carioca. Logo no início, o Flu levou um gol, o que o obrigava a marcar três, se quisesse ao menos chegar à prorrogação. Graças a uma atuação espetacular de Thiago Neves, o time conseguiu, levando o público das arquibancadas e milhares de torcedores em todo o país a alimentar uma certeza: diante da realização de tarefa tão improvável, não haveria como o título escapar.

Mas escapou.

Faltou um gol — o gol solitário que definiria a contenda em favor do Fluminense — e, na disputa de pênaltis, a LDU foi campeã.

Nunca consegui, embora ganhe meu pão com o ofício da escrita, formar uma sequência de palavras capaz de expor o que aconteceu naquele 2 de julho. As lembranças são embaçadas. O enredo soa inverossímil. A narrativa simplesmente não dá conta.

Mas isso ajudou a lançar luz, ainda que precária, sobre uma antiga perplexidade que me dominava: compreender por que um esporte tão impregnado no imaginário brasileiro teve por décadas presença relativamente tímida em nossa literatura.

Mais do que a questão, sempre levantada, de um suposto elitismo dos escritores, talvez essa dificuldade de reproduzir em texto a algaravia de fatos, situações, sentimentos que animam um jogo, de recriar com tintas ficcionais o que se passa dentro das quatro linhas, seja o principal fator de limitação. Como afirmava o escritor Flávio Moreira da Costa, a exemplo da arte no sentido tradicional o futebol é “uma expressão em si mesma”. De modo que toda expressão sobre o futebol tenderia ao “discurso sobre o discurso”, à diluição.

Mas é fato que, embora não tão extensa, nossa produção literária ecoou os diferentes capítulos da história do chamado esporte bretão no Brasil desde que Charles Miller o trouxe da Inglaterra, no fim do século 19. Tanto na crônica, cuja fortuna é significativamente mais extensa, quanto no romance, no conto e na poesia.

Já nos primórdios, a nova modalidade foi pauta entre os ficcionistas. Escritores como Afrânio Peixoto e Coelho Neto saudavam o futebol — na época, restrito à aristocracia — como elemento capaz de ajudar a ensinar a disciplina e a desenvolver o espírito de grupo.

Graciliano Ramos, em oposição, revoltava-se contra a “invasão” de um esporte britânico e apostava no fracasso da modalidade por causa do biotipo do brasileiro. “Os verdadeiros esportes regionais estão aí abandonados: o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, a cavalhada, e o melhor de tudo, o cambapé, a rasteira. A rasteira! Esse sim é o esporte nacional por excelência!”, protestava, sob o pseudônimo de J. Calisto, em artigo de 1921.

O maior opositor, porém, foi Lima Barreto. Indignado contra o caráter elitista dos clubes, ele chegou a fundar, em 1919, uma “Liga Contra o Foot-Ball”. O objetivo era alertar contra os malefícios da prática do jogo de bola, como brigas e contusões, e lutar pela proibição do esporte.

Com a popularização, que acabaria por mudar radicalmente o perfil elitista dos primeiros anos, as polêmicas diminuíram de intensidade, mas não se extinguiram. Na década de 1940, Oswald de Andrade e José Lins do Rego reeditaram o debate, temperando-o com as vaidades do universo literário.

Para Oswald, que via o esporte como um “ardil imperialista”, o colega se servia do futebol como “lenitivo” para a própria “escassez literária”. A resposta foi dada, embora de forma implícita, na crônica Fôlego e classe, na qual José Lins observava: “Na verdade uma partida de futebol é alguma coisa a mais que bater uma bola, que uma disputa de pontapés. Há uma grandeza no futebol que escapa aos requintados”.

Nessa época, o esporte começava a aparecer também fora do âmbito da crônica. José Lins do Rego dedicara um romance (Água-mãe) ao futebol e Alcântara Machado, curiosamente amigo de Oswald, fazia sucesso com Brás, Bexiga e Barra Funda, seleta de contos na qual o jogo aparecia com destaque. Mais tarde, autores como Edilberto Coutinho, Sérgio Sant’Anna e Rubem Fonseca abordariam igualmente o tema em suas obras, pavimentando uma estrada na qual hoje caminham colegas contemporâneos, como Flávio Carneiro, Sérgio Rodrigues, Mário Rodrigues e André Sant’Anna.

O time da poesia poderia escalar Vinicius de Moraes, Ferreira Gullar, Armando Freitas Filho e Glauco Mattoso. Todos dedicaram versos ao esporte. Na contenção, jogaria João Cabral de Melo Neto, que chegou a atuar de center-half (ou, como se diz hoje, volante) no América, de Recife — time para o qual torcia. Tido com um talento promissor, o poeta integrou também a equipe do Santa Cruz, sagrando-se campeão estadual juvenil de 1935, antes de abandonar os gramados.

Já a tradição da crônica futebolística se sedimentou por meio de nomes como João Saldanha, Sandro Moreyra, Armando Nogueira, Mario Filho e Nelson Rodrigues. Os dois últimos, irmãos, foram pioneiros — cada qual a seu modo.

O rubro-negro Mario tirou o fraque e a cartola do texto, abdicando do formalismo em favor de um registro mais próximo do linguajar do torcedor. Além disso, foi peça fundamental na popularização do futebol, promovendo eventos como o Torneio Rio-São Paulo e criando designações hoje clássicas, como o termo “Fla x Flu”.

Nelson e Clarice
Apaixonado torcedor do Fluminense, Nelson via o futebol como síntese da “alma brasileira” e o campo, como um microcosmo das tensões sociais e estéticas do país. Nas crônicas, inventava personagens como o Gravatinha e o Sobrenatural de Almeida, que interferiam nos jogos, esfumaçando de vez as fronteiras entre realidade e fabulação.

Outros autores-cronistas, embora não tenham se notabilizado pelo registro esportivo, trataram do futebol em seus textos. É o caso de Carlos Drummond de Andrade, Luis Fernando Verissimo e Cristovão Tezza. E também de Clarice Lispector, que em rara incursão no assunto realiza o desejo de Armando Nogueira.

O jornalista dissera que, “de bom grado” trocaria uma vitória do seu Botafogo por uma crônica de Clarice sobre futebol. Alvinegra, como o colega de Jornal do Brasil, ela respondeu com bom humor — “Se o seu time é o Botafogo, não posso perdoar que você trocasse, mesmo por brincadeira, uma vitória dele nem por um meu romance inteiro sobre futebol” — e fez a tal crônica, publicada com o delicioso título “Armando Nogueira, futebol e eu, coitada”.

Na literatura, como na vida, a derrota parece mesmo marcar mais fundo. Às vezes, uma existência inteira. O jornalista e crítico de cinema Paulo Perdigão, por exemplo, foi um obcecado pela derrota da Seleção Brasileira para o Uruguai, na final da Copa do Mundo de 1950.

Em sua única investida na ficção, ele escreveu um conto chamado O dia em que o Brasil perdeu a Copa, cujo protagonista volta ao tempo de garoto para tentar mudar o resultado do jogo. É uma alegoria sobre a inevitabilidade de certas coisas, sobre o papel do “se” no futebol e, claro, sobre a dor pelo que nos escapa por pouco, muito pouco.

A máquina do tempo inventada por Perdigão talvez servisse, décadas depois, a outra viagem até o mesmíssimo estádio do Maracanã. Mais precisamente até o dia 2 de julho de 2008. Quando um marmanjo de 36 anos poderia então descer as arquibancadas, invadir o gramado e distrair o goleiro da LDU enquanto Thiago Neves marca seu quarto gol, aquele que deu o título da Taça Libertadores ao Fluminense.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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