🔓 A obra-prima desconhecida

Caso o artista pretenda conquistar fama e glória, precisará de muita ambição e disposição para a luta
Ilustração: Balzac no traço de Granville, em 1831
24/04/2022

Atravessei boa parte da vida catatônico. Eu entrava na sala de aula, me sentava na terceira fila de cadeiras para tentar ouvir melhor, mas a sensação era como se eu estivesse num longo e sombrio túnel, os sons chegando como mugidos distorcidos e as imagens projetadas do lado de fora estivessem encobertas por uma fuligem rarefeita. Robinho era o aluno mais estimado da professora mais estimada de toda a sétima série. Ele sentava na primeira fila e tinha a mesma cara do Alfred E. Neuman da revista Mad. Eu reparava nos seus olhos enormes, suas orelhas de Dumbo e não conseguia acreditar que ele fosse tão inteligente a ponto de tirar três notas dez seguidas em redação. Já a dona Francisquinha, essa se distinguia por, ao contrário dos demais professores, aparentar gostar do que fazia e, mais surpreendente ainda, aparentar gostar daquele bando de jovens barulhentos, desesperados para conquistar a mais ínfima atenção.

Eu era um zero à esquerda. Não tirava boa nota em nada. Quase não tinha amigos, pois não me enturmava com os bagunceiros arredios do fundão nem com os estudiosos presunçosos próximos ao quadro-negro, basicamente constituído de meninas. Uma delas espalhou que o Robinho entregara um caderno de 60 páginas para dona Francisquinha e obtivera severos elogios. Era a primeira versão de um livro que estava escrevendo. Eu era viciado em quadrinhos e, não sei se por despeito ou inveja, achava as redações do meu colega orelhudo insípidas e cansativas. Faltava apenas um mês para concluirmos o ano letivo, mas decidi que tiraria uma nota maior em redação do que Robinho.

No dia do exame, dona Francisquinha colocou uma caixinha de música em sua mesa e pediu que escrevêssemos 20 linhas inspiradas no objeto. Poderia ser uma descrição, uma lembrança pessoal ou uma história inventada. Inspirado por filmes antigos de terror a que eu assistira na televisão, descrevi a caixinha e o som que emitia com cores soturnas, atribuindo-lhe um poder maléfico a submeter quem dela usufruísse até levá-la à loucura completa. Caprichei no vocabulário, enredo e atmosfera. Entreguei minha prova certo de que seria impossível alguém me superar em imaginação e estilo.

Aguardei ansioso a chegada da próxima aula e o anúncio das pontuações da redação. Durante esse curto intervalo, fiquei radiante pelo meu bom desempenho no trabalho. Tudo que acontecia ao meu redor me provocava risos, mesmo o pequeno castigo ministrado por minha mãe após eu derrubar um copo acidentalmente. Quando as notas foram distribuídas, dona Francisquinha deixou a minha e a de Robinho por último, o que confirmava minhas desconfianças. Então, sem exagerar no suspense, a professora falou a todos que eu tinha me superado, que eu apresentara uma perspectiva inusitada para a proposta e, por essa razão, me dera um seis, pois me faltara atentar para os detalhes da pontuação e ortografia. Já o Robinho, esse brilhou intensamente e, segundo a orgulhosa dona Francisca, nos legou nada menos do que uma obra-prima em vinte linhas, ganhando mais uma vez a nota máxima.

Não há dúvida que o germe do talento artístico (sim, eu acredito em vocação) pode ser reconhecido nos bancos escolares e estimulados. Se a tarefa do educador é duríssima por si, considerando o grau de subjetividade a envolver a matéria criativa, no Brasil ela ainda é mais árdua devido ao rol de carências acumuladas por séculos e séculos de atraso. Tratando-se de estética, não basta conhecimento técnico, embora seja indispensável, para abalizar julgamentos de valor. Nessa equação, algo de intangível nos escapa. Não são raros os casos de escritores famosos que atravessaram os anos de sua formação escolar invisíveis. Balzac, para citar um gigante, foi um deles. Por outro lado, Charles Bukowski só enveredaria para a literatura graças ao prazer que uma professora demonstrou com sua escrita.

Em termos de reconhecimento, tendo o artista produzido uma obra-prima ou não, nada impedirá que ele nunca venha a sair das sombras. É comum eu escutar de amigos que a verdadeira régua da genialidade encontra-se fora de seu próprio tempo. Todavia, a máxima realização não serve como garantia alguma da longevidade do trabalho, pois uma série de fatores não-artísticos (mas nem por isso pouco relevantes) condicionam seu alcance futuro e receptividade. Para além da capacidade criativa, caso o artista pretenda conquistar fama e glória, precisará de muita ambição e disposição para a luta (o que também não significa que outros não consigam fama sem investirem tanto esforço nem possuírem muito talento).

O que teria acontecido com a saga Harry Potter se J. K. Rowling tivesse desistido de buscar uma editora após o enésimo não recebido? E se Renato Russo tivesse consumado o suicídio quando enfrentou os problemas para gravação do primeiro disco da Legião no Rio de Janeiro? E se Proust não pagasse a primeira edição do Em busca do tempo perdido do próprio bolso e não galanteasse os críticos com jantares para ganhar o Prêmio Goncourt? Se Van Gogh não possuísse um irmão como Theo? Quantas obras-primas não morreriam desconhecidas?

Não sabemos se neste exato momento filmes, quadros, peças de teatro, romances e músicas maravilhosas (que, sem eles, nós não gostaríamos mais de continuar vivos) não estão sendo gestados. Poderia ser o novo livro de contos de Ivan Castilho em Guarapari ou, talvez, uma série de streaming com roteiro original assinado por Robinho.

Lima Trindade

Nasceu em Brasília (DF), em 1966. É mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou o romance As margens do paraíso (2019), a novelaO retrato ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014) e o livro de contos Corações blues e serpentinas (2007), entre outros.

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