(18/11/20)
Num de seus livros, Aldir Blanc lembra a noite de verão em que estava sozinho no quarto, às voltas com um pesadelo, quando o avô o chamou. Propôs que fossem ao quintal. Ao lado do tanque, Seu Antônio encostou a escada e escalou os degraus até a caixa d’água. Depois puxou o menino pelas mãos, para então afastar a tampa, apontando para dentro:
— Olha…
Ao flagrar a imagem da lua cheia refletida na água, o pequeno Aldir ergueu os olhos no sentido oposto. Virou-se para o céu.
— É a lua!
— Aquela, nĂŁo. Aquela Ă© gelada, feita de pedras, uma espĂ©cie de vulcĂŁo extinto — respondeu o avĂ´ — Essa aqui, dentro da caixa d’água, Ă© a lua da Zona Norte. Põe a mĂŁo nela…
TĂŁo distante na imensidĂŁo, a lua cheia de repente estava ali ao lado, passĂvel de toque, trĂŞmula e morna. Essa efĂgie ressoaria na obra do futuro escritor e compositor, na qual o sublime e o chinfrim conviveram sem estrondo. Mais que isso: estiveram amalgamados a ponto de nĂŁo conseguirmos distingui-los.
Na ode ao poluĂdo Rio MaracanĂŁ, composta com Paulo EmĂlio, Aldir pede que se injete em suas veias o soro de “pilha e folha morta”, de “aborto criminoso, de caco de garrafa, de prego enferrujado”. O lixo da cidade, cuja capa foi retirada, se deixa ver sem enfeites. A água turva se converte em sangue. Que circula, dentro do cronista, como o curso de um rio particular.
“Meu quintal Ă© maior do que o mundo”, escreve Manoel de Barros a propĂłsito da enormidade desses universos construĂdos dentro de nossas histĂłrias miĂşdas. Como a da amoreira que a mĂŁe plantou nos fundos de casa na Ă©poca em que eu crescia dentro de sua barriga.
A gravidez lhe despertara o desejo por amoras. Quando nasci, logo notaram que havia um sinal escuro, e alto, na cabeça do bebê. A mãe adorava repetir que ali estava a amora tão ansiada. A mesma fruta de sabor agridoce na qual outro poeta, o português Herberto Helder, experimentou “o entusiasmo do mundo”.
Volto ao Aldir. Agora, em parceria com Moacyr Luz. Os versos de uma separação que, doloridos, transitam pelos botequins mais vagabundos, correm ladeira abaixo atĂ© que as coisas se definam “como sĂŁo”: a ilusĂŁo, um vĂcio; as estrelas, pequenos incĂŞndios na solidĂŁo. Nada mais.
Talvez porque estejam lá, a trilhões de quilômetros, e esqueçamos de suas dobras. Da bagatela que, por vezes, acende a transcendência.
Um samba do Cartola, mãos dadas no cinema, o primeiro olhar de um bebê. A luz que bate no fim da tarde, cobrindo as pessoas de um dourado sutil. O cheiro do café assim que fica pronto. O primeiro beijo. Os ipês amarelos quando florescem. Massagem nas costas. Pestana depois do almoço. Um lalaiá da Ivone Lara. Aroma de maresia. O primeiro amor, ainda que nem seja amor. Pixinguinha tocando flauta, cafuné da mulher amada. O cheiro do pão que sai do forno, corrida na chuva, goiabada com queijo. Ou a lua cheia projetada no espelho precário de uma caixa d’água sem tampa em Vila Isabel.