🔓 A gente chama de teimosia…

Tem homem, pasmem!, que não se dirige a uma mulher, numa roda de conversa, em especial se houver outro homem por perto
Ilustração: Carolina Vigna
09/02/2021

Passeava pelas ruas irregulares da cidade de Tiradentes, mãozinha dada com o namorado, sol na cuca, sede, fome, quando avistei uma lojinha de roupas. De longe, deu para ver que estava vazia e que vendia uma marca interessante. Olhinhos brilharam, a fome deu um tempo, o namorado fez um muxoxo resignado e fomos em frente. Entramos.

Lá dentro, um velhinho sentado numa cadeira fazia alguma coisa distraidamente, enquanto fui percorrer duas ou três longas araras de vestidos, saias e blusas, pelas quais passei rapidamente, escaneando as peças com os olhos, a identificar alguma coisa menos berrante. Achei uma, duas, mas os tamanhos não me cabiam. Resolvi então tirar o sossego do senhorzinho:

– Boa tarde, o senhor tem tamanho maior desta?

E mostrei a ele uma peça mais sóbria, que precisaria ser uns centímetros mais larga para me vestir. O ar de preguiça do homem foi sentido a alguns metros, mas persisti, entendendo que se ele ali estava… era para atender e vender. Logo ele passou a me explicar que não sabia onde estava nada, que não entendia a lógica dos guardados, que a loja era da esposa dele, que por infelicidade estava viajando, e que ele tinha de abrir o comércio e vender, mas que não sabia sequer onde estava a máquina de débito. Ainda assim, eu não desisti da blusinha, que foi ficando cada vez mais valorosa.

Em alguns minutos, enquanto reclamava, o senhor achou umas prateleiras onde ficavam as roupas do estoque. Cada prateleira estava etiquetada com P, M, G, GG, etc. E pude ver isso meio de longe, já sem paciência, mas me segurando para não invadir o espaço do reclamão. No entanto, não pude fazer isso por muito tempo. A fome começou a voltar, o sol aquecia demais a Terra e eu precisava ir embora, antes que o muxoxo do namorado se transformasse em algo mais. Fui eu mesma às prateleiras, que ficavam visíveis, abertas, e procurei o tamanho G da tal blusa. Isso depois de recusar outras, que o semiatendente me empurrava como se substituíssem a que eu queria.

Depois dessa saga em busca da blusa perfeita, fomos enfrentar o pagamento. Pela reclamação dele, eu já sabia que a máquina de débito seria outra parte da aventura. Dito e feito: ele não sabia direito onde ela estava; quando achou, ela estava desligada; quando, enfim, a ligou, ela estava claramente sem chip. E eu dizia a ele:

– Senhor, está sem chip. Essas coisas precisam de chip para transmitir os dados.

Ao que ele respondia, já bem grosseiramente:

– Mas ela está ligada, menina. Põe aí o seu cartão.

– Mas, senhor, está escrito aqui que está sem chip. O senhor sabe onde fica o chip? Posso ajudá-lo com isso.

– Não, minha filha. Ponha seu cartão e a máquina vai fazer o débito.

Incomodada com o tom dele, mas ainda calçada de paciência, em respeito àquela pessoa que bem poderia ser o meu pai, enfiei o cartão na máquina, o que, obviamente, não adiantou nada. O recado no visor era algo sobre chip e ligar a máquina, etc. Coisas que eu sabia e entendia, mas que o homem se recusava a fazer. Era evidente a falta de intimidade dele com tecnologias digitais, algo que eu podia compreender completamente. Mantive, então, minha postura de quem oferece ajuda, a despeito do cenho franzido que ele me apontava.

Seguiu-se essa conversa ainda por alguns minutos. Eu, tentando ser paciente e dizendo a ele que faltava um chip, que, se ele achasse o chip, eu poderia ajudar; enquanto ele era grosseiro, teimoso e insistia em frases como “eu sei como é”, “você não sabe dessas coisas, menina”, “não é nada disso que você está dizendo”.

Desisti da compra. Pedi licença e desculpas, mas só porque se tratava de um respeitável senhor e artesão talentoso na cidade. Não fosse isso e eu teria me alterado. O namorado, estranhando muito a ausência de uma sacola de blusinha, quis saber o que havia acontecido. Não prestara atenção ao papo todo. Não sei se achou que eu e o monsenhor estávamos discutindo moda primavera-verão.

Expliquei que o que aquele quase-vendedor estava fazendo era um comportamento que eu conheço de longa data e que reconheço em segundos. A gente chama de teimosia, mas é um aspecto da misoginia. É quando a gente é sempre burra, não entende nada, não sabe o que está dizendo e jamais terá a ajuda aceita. O tom que ele usava, as frases que dizia, a impaciência orgulhosa com que lidava comigo e com a situação foram me deixando impressionada e triste, mas ainda demoraram a me fazer desistir. Tentei educadamente, mostrei o texto do visor da máquina a ele, mas a resposta era sempre no sentido de que minha “ideia” era absurda, idiota, improvável. E é assim que muitos homens agem quando falam com mulheres, em especial as que sabem algo um pouco mais do que eles ou simplesmente sabem algo que eles não sabem.

Posso contar o caso de um motorista, posso contar episódios com colegas e ex-chefes, posso contar casos menos e mais tenebrosos. Fato é que a gente sente quando há uma resistência que vem de outro lugar e que claramente tem a ver com uma assimetria que, do rapazote ao velhote, só existe porque eles insistem em nos colocar num lugar menor, mesmo quando a gente sabe que não está lá (e principalmente por isso). Aí a irritação fica maior ainda. Tem homem, pasmem!, que não se dirige a uma mulher, numa roda de conversa, em especial se houver outro homem por perto. Falam com os homens ao redor, os olhares passando por cima de nossas cabeças, mesmo se o assunto for esta mulher ou algo que seja da alçada dela. Esta é uma cena absolutamente impressionante, mas que ainda grassa por aí (já vivi isso, apenas para um exemplo, e mais de uma vez, quando fui a uma concessionária de carros com meu pai, mas o carro era meu…).

Em todo caso, quem não conseguiu vender uma blusinha não fui eu; quem não admitiu ajuda também não fui eu; e quem perdeu a chance de um papo simpático, numa tarde quente em Tiradentes, também não fui eu. O mundo hoje tende a ficar melhor para mais gente, mas só para quem já entendeu o recado.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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