Imagine você, leitor ou leitora, que no exato momento em que lê esta coluna, esteja você no conforto da sua casa, na segurança de seu ambiente de trabalho ou num local outro qualquer onde impere uma tranquilidade mínima para que se concentre em percorrer estas linhas e, por um minuto ou dois, seja possível esquecer que faz uma leitura e, imagine você, escutar um som estranho lá fora, mesmo que esteja num banco de praça, haja pombos ao seu redor e mais uma infinidade de gente indiferente passando. Permita-se pensar na possibilidade de você lendo este texto e escutando o som de passos ou um simples assobio a arrancar sua atenção de mim. E você interrompe a sua leitura, levanta o rosto e enxerga no lugar onde está, seja sentado no sofá, na cadeira de escritório ou no banco da praça, um homem imóvel ao seu lado.
Suponha que esse homem lhe ofereça um bilhete para uma viagem aérea. Se você tem pânico de altura, sacuda a cabeça e rapidamente troque o bilhete por uma passagem de navio. Porém, se o balanço do mar costuma lhe dar náuseas, escolha uma alternativa mais agradável, pode ser o deslizar macio de um ônibus modernoso ou até, para o caso de você ser uma pessoa romântica, uma vistosa carruagem. O que realmente importará nesse caso será a garantia de sua chegada ao destino.
Repare bem no homem que lhe faz a oferta, em como ele é simpático, cordial e, principalmente, digno. Algo nos olhos dele inspira confiança imediata e bondade. Você, no entanto, que não é trouxa e já viu muitos lobos sob peles de cordeiros, não comerá essa farinha. Por isso, resolverá alimentar uma conversa para flagrar o mínimo deslize, uma prova definitiva do truque. Depois de uma hora de papo, com alguma surpresa, mas não muita, pois o homem se demonstra verdadeiramente amável, você descobrirá que pensam iguais em diversas coisas, entre elas, que hoje, com tanta violência no mundo, os extremos da política e a volta da Guerra Fria, não se pode confiar em quase ninguém.
O convite é tentador, talvez você responda a ele, mas acaba de se lembrar que possui alguém compartilhando o seu teto, seja amigo, amor, família constituída com filhos ou somente um gato, e certamente não desejará abandoná-los para um longo passeio de férias. O senhor amoroso então dará um sorriso meigo e explicará que a proposta se estende também aos seus entes queridos. Ele não lhe pede nenhuma contrapartida financeira, não deseja que assine papel. Você reflete, assume que precisa de descanso, diz para si mesmo que, sendo dono do próprio nariz, poderá voltar quando sentir vontade.
Imagine você chegando ao esperado destino, olhando ao redor e, a princípio, achando o ambiente rústico demais para alguém da cidade. No entanto, o senhor gentil estará lá para lhe receber. Ele lhe apresentará os outros hóspedes, todos corados de sol e felizes, levará você para uma volta no terreno, mostrará as plantações, as águas cristalinas do rio e as criações de animais. Você almoçará no restaurante com comidas típicas, verá as oficinas de trabalho para os adultos, a escola para as crianças e as áreas de lazer. Tudo limpo, bem cuidado e organizado. Após andar tanto, você tirará uma soneca. À noite, avisarão, haverá um coral de música sacra e, em seguida, exibição de dança.
Os dias se seguirão nesse ritmo e você possivelmente se integrará à vida na colônia de tal modo que desejará ficar. E os dias se transformarão em meses e, numa fração de segundo, toda aquela limpeza e organização parecerão a você demasiadas, irreais. Sentirá que algo ali não se encaixa. Não contará a ninguém a respeito dessa sensação e, apesar do mal-estar, tentará prosseguir sua rotina com naturalidade.
É capaz que a essa altura você não durma mais tão bem quanto no começo da estada e, após se virar de um lado para outro na cama, noite alta, ouça um grito, um pedido de socorro. E os versos de Tunai e Sérgio Natureza, na voz indefectível de Elis, comecem a soar em sua mente: “As aparências enganam / aos que odeiam e aos que amam, / porque o amor e o ódio / se irmanam nas fogueiras das paixões.”
É exatamente esse o tema de Colônia dignidade, série documental que vi recentemente no Netflix e, penso, você deveria ver também, devido aos importantes pontos de contato entre aquela realidade, a do Chile no decorrer dos anos 60 e 70, com a nossa, no Brasil de hoje, assim como pelo impacto que determinadas ações, orquestradas subterraneamente sob o manto das mais belas intenções, podem afetar tragicamente o cotidiano e destruir vidas.
Sugiro que ignore o trailer, a apresentação da série e a vontade de comparar o homem simpático que lhe ofereceu um bilhete de embarque no segundo parágrafo com Jim Jones, Charles Manson ou João de Deus, e veja os seis episódios sem nenhuma pressa, imaginando-se tanto na pele dos colonos alemães quanto na de seus anfitriões, os cidadãos chilenos, percebendo que, apesar de parecermos imensamente diferentes e distantes, as aparências, na maioria das vezes, enganam.