🔓 A edição universitária como política pública

Com um perfil muito próprio, a edição científica no Brasil se afirmou como expressão privilegiada da democratização do acesso ao conhecimento
Diderot e D’Alembert, autores de “Enciclopédia — Discurso preliminar e outros textos”
01/02/2021

No século passado, quando a Revolução Francesa completava 200 anos, a nascente Editora Unesp marcou seu padrão editorial com uma edição da Enciclopédia — Discurso preliminar e outros textos, de Diderot e D’Alembert. À época, e como editor executivo da Editora, projetávamos naquele lançamento um padrão de excelência, tanto na escolha do tema quanto no projeto editorial e na apresentação gráfica do volume, iniciativa que se mostrou bem-sucedida, medida pelo êxito junto aos leitores, pela crítica e pelo primeiro Jabuti conquistado. Por detrás da estratégia editorial, debatíamos que o título era uma oportunidade de reivindicar a participação da igualmente jovem universidade pública paulista na tarefa incessante de divulgar e valorizar a produção científica em um país que historicamente se colocava de costas para essa atividade.

Sentíamos, enquanto professores que iniciavam uma nova editora universitária, que o terreno da divulgação de livros acadêmicos no Brasil mal havia começado a dar seus primeiros passos, apesar do esforço de várias universidades e suas editoras desde os anos 1950. Se já havia uma massa crítica para ser citada, as lacunas eram ainda maiores e a intensidade, a qualidade editorial e a distribuição dos livros publicados na área eram muito insuficientes, principalmente porque já estávamos em ritmo acelerado do que se convencionou chamar a partir dos anos 1980 de “era da informação e do conhecimento”. Faltava aí, também, a concepção adequada de política pública para o livro científico e universitário.

Não foi sem razão que no prefácio daquela edição da Enciclopédia, escrito por mim e pelo professor José Aluysio Reis de Andrade, profundo conhecedor da filosofia francesa, afirmamos: “Nesta terra ainda tão marcada por disparidades e diacronias não há como se deixar de ser, mesmo com medida e prudente reserva, enciclopedista e iluminista”.

Romper as barreiras da obscuridade que impediam a difusão do conhecimento produzido pela inteligência das instituições de pesquisa científica e das universidades, e espalhá-las “a mãos-cheias”, como disse o poeta para as letras, se apresentava como um dever e um desafio gigantesco para as editoras universitárias públicas do país que se aprumavam para um florescimento naquela segunda metade da década de 1980. Há muita história a ser contada deste período, mas a questão que nos interessa hoje aponta para uma nova pergunta: apesar de já termos percorrido 1/5 do novo século, ainda convivemos com barreiras à produção do conhecimento e, igualmente, de sua democratização ou divulgação ampla?

O desolador cenário do governo atual, marcado pela anti-ciência, pelo negacionismo, pelos múltiplos falsos profetas de enganosas religiosidades que se colocam acima da razão e da evidência científica, seria suficiente para demonstrar que, apesar dos avanços das pesquisas acadêmicas que ganharam força com a democratização pós ditadura, continuamos a conviver com inúmeras barreiras contra a racionalidade e o pensamento científico. Embora persistam, as evidências dessas barreiras não devem tornar menor o imenso movimento já realizado, e ainda em plena execução, do que se fez para combatê-las. Os desafios foram enfrentados com criatividade e resiliência nos últimos 30 anos e na perspectiva de construção de uma política pública para a atividade editorial universitária.

Em um país com alto índice de analfabetismo funcional, capaz de continuar negando o direito à leitura para a absoluta maioria dos brasileiros, falar da literatura científica pode parecer algo secundário, não prioritário. Mas se apartarmos o esforço de democratização do acesso à leitura do livro científico, apenas tangenciando-o com o esforço para fomentar a literatura, ou leitura literária, certamente estaríamos incorrendo no erro primário de discriminar quem pode ou quem não pode fazer e ler ciência no Brasil. Em outras palavras, dar graus de importância diversa entre as várias produções da cultura escrita é atitude avessa a qualquer política pública democrática e includente de leitura. É evidente que não trato aqui de estratégias de formação de leitores, mas do pressuposto constitucional de que a todo cidadão deve ser facultado o acesso à toda literatura.

Já ultrapassados 30 anos daquela década que transformou para melhor o rumo das editoras universitárias brasileiras, hoje podemos afirmar que o livro científico no Brasil enveredou por caminhos fundamentais. Com um perfil muito próprio, mas espelhado nas editoras acadêmicas do mundo anglo-saxão, a edição científica no Brasil se afirmou como expressão privilegiada da democratização do acesso ao conhecimento produzido pelos nossos pesquisadores de todas as áreas do saber.

O livro, tão sacralizado pela tradição reacionária como um objeto do saber inatingível para a maioria é, na verdade, um partícipe ativo da ciência em seu movimento racional, criativo e contraditório. Em suas páginas ou bytes, os livros acadêmicos são o repositório permanente das conquistas de superação de teorias, conceitos e práticas científicas. O livro universitário é um “livro sem fim”, interminável como o desenvolvimento dos conceitos científicos. Neles nada há de definitivo ou sagrado, e as ideias escritas vêm da especulação raciocinada sobre evidências das pesquisas, na tradição do “dicionário raciocinado das ciências e das artes”, como prescreve o subtítulo da Enciclopédia iluminista.

A saga dos livros científicos se contrapõe à saga dos livros sagrados, ditos eternos, transcendentes, divinos. Nos primeiros, são infinitas as possibilidades de se pensar o bom e o belo, as multiplicidades da natureza e do ser humano, a complexidade do seu território e das galáxias. Nestes textos, aparentemente instransponíveis, pensamos o humano e a vida por outros ângulos, mas com igual paixão da literatura e da poesia. As escritas não se contrapõem, completam-se.

Os catálogos são muitos e abrangem todas as áreas do conhecimento. Das mais de 120 editoras universitárias filiadas à Associação Brasileira de Editoras Universitárias, a diversidade é representada tanto por editoras que difundem análises das humanidades, como por publicações que criam canais de acessibilidade a problemas intrincados das ciências biológicas, como a atual pandemia da Covid-19. Exemplo recente é a publicação pela Editora da Universidade Federal das Bahia (UFBA) com a Rede CoVida (projeto de colaboração científica formado em 2020 para estudar e colaborar interdisciplinarmente para o estudo da pandemia) do livro Construção do conhecimento no curso da pandemia de Covid-19, publicado em suporte de e-book e editado como um “livro sem fim”, em aberto para contribuições constantes de novas descobertas e debates sobre o vírus que nos assaltou (https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/32370). Na mesma linha de instant book, e com o propósito de fornecer informação balizada pela ciência sobre a pandemia, a Editora Fiocruz, em parceria com o Observatório do Covid-19 da própria instituição, lançou também a série Informação para ação na Covid-19 — Fiocruz, disponível para acesso aberto na plataforma Scielo Livros (http://books.scielo.org/id/hdyfg).

Pela ótica da política pública e da formação de uma nação de leitores plenos, mantra deste colunista, é fundamental que as nossas universidades e instituições públicas de pesquisa, na sua luta pela sobrevivência frente às barbáries fundamentalistas dos governos atuais, incluam suas editoras como parte integrante do esforço pela preservação do pensamento e da pesquisa científica. Como já pontificava a Universidade de Cambridge na sua fundação, nos primeiros anos do século 16, caberá à universidade pesquisar e difundir o conhecimento científico para a sociedade. Publicar é também atividade fim das academias e parte da tarefa de construção de uma política baseada no conhecimento e nos valores democráticos.

Os desafios permanentes da edição científica brasileira são hoje os mesmos que o mundo vive e enfrenta: razão x irracionalismo — imaginação x conservadorismo — civilização x barbárie.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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