Discordo de quem acha que o ginecologista e o urologista sĂŁo os profissionais da saĂşde que atuam no campo mais Ăntimo do nosso corpo.
É o dentista.
Pela boca passam sussurros de amor, gritos de angĂşstia, grunhidos de Ăłdio.
Na boca residem sabores, dissabores, o gosto da bile.
É nessa cavidade que ecoa o pensamento e o sexo.
É na boca onde nasce e morre um sorriso.
E Ă© ela que saliva com desejo.
NĂŁo há nada mais Ăntimo que a boca.
Carlos Drummond de Andrade disse antes e melhor (Brejo das almas):
Boca: nunca te beijarei.
Boca de outro, que ris de mim,
no milĂmetro que nos separa,
cabem todos os abismos.
Boca: se meu desejo
Ă© impotente para fechar-te,
bem sabes disto, zombas
de minha raiva inĂştil.
Boca amarga pois impossĂvel,
doce boca (nĂŁo provarei),
ris sem beijo para mim,
beijas outro com seriedade.
Florbela Espanca (Os versos que te fiz), melhor ainda:
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem para te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim para te oferecer
TĂŞm dolĂŞncia de veludos caros,
SĂŁo como sedas pálidas a arder…
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!
Mas, meu Amor, eu nĂŁo tos digo ainda.
Que a boca da mulher Ă© sempre linda
Se dentro guarda um verso que nĂŁo diz
Amo-te tanto! E nunca te beijei…
E nesse beijo, Amor, que eu nĂŁo dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
Para fechar a sessĂŁo poesia com chave de ouro, Pablo Neruda (Cem sonetos de amor):
Tenho fome da tua boca, da tua voz, do teu cabelo,
e ando pelas ruas sem comer, calado,
nĂŁo me sustenta o pĂŁo, a aurora me desconcerta,
busco no dia o som lĂquido dos teus pĂ©s.
Estou faminto do teu riso saltitante,
das tuas mĂŁos cor de furioso celeiro,
tenho fome da pálida pedra das tuas unhas,
quero comer a tua pele como uma intacta amĂŞndoa.
Quero comer o raio queimado na tua formosura,
o nariz soberano do rosto altivo,
quero comer a sombra fugaz das tuas pestanas
e faminto venho e vou farejando o crepĂşsculo
à tua procura, procurando o teu coração ardente
como um puma na solidĂŁo de Quitratue.
E, no entanto, poucas ações médicas são tão violentas, sanguinárias e incômodas.
É em Neruda que estou pensando enquanto a dentista pratica fisting nos meus dentes. Boca aberta; olhos fechados; motorzinho ligado. Um canudo às avessas apoiado em meus lábios suga o que me restava de dignidade.
Hábil e orgulhosa, me mostra no espelho a reconstrução realizada.
Digo “Dora (seu primeiro nome) Claudel (de Camille)”. Ela sequer ensaia um sorriso e preciso explicar a piada-elogio obscura.
Muito do que digo, na vida, só funciona dentro da minha cabeça.
É uma senhora gentil. Não quero estar ali, mas gosto dela.
Vou embora resignada com metade do rosto adormecido, pensando na boca de que tenho fome.