🔓 A baleia do Pacífico Norte

Enquanto a escritora segura um grito, o mamífero que canta em frequência maior do que os outros não é ouvido por seus pares e o elefante Sandro busca um lar
“O grito”, de Edvard Munch
13/05/2022

Está acostumada a caminhar neste parque. Já sabe onde o chão alaga e onde está a carniça de um animal não identificado e peludo na qual a cachorra gosta de se esfregar. A escritora acaba por preferir desviar da carniça e andar de galocha no terreno pantanoso do que voltar pra casa com a cachorra fedendo a bicho morto.

Raramente se deparam com outras pessoas. O parque é enorme, e a escritora e a cachorra buscam caminhar no lado interno do lago, onde podem abrir mão da coleira e do estado de alerta. Por isso, andam em silêncio. Às vezes, a escritora pensa que aquele seria um bom momento para soltar um grito sem sentido, um avulso aaaaaahhhh sem ninguém ouvir, só pra ver como é, ver o que acontece, se é que acontece.

Nas águas do Pacífico Norte, uma baleia grita em vão. Não grita: canta, corrige a escritora. Mas é grave demais: as outras baleias cantam numa frequência entre 12hz e 25hz, e ela canta a 52hz. Não é que as outras baleias a ignorem, é que elas não têm a capacidade de escutar o seu chamado. São surdas para a baleia solitária não por escolha, mas por tragédia.

A escritora observa o homem que se aproxima do bambuzal do outro lado do lago. Escondidos naquele bambuzal, ela já viu um homem que usava o celular, um homem que contemplava o céu, um homem que fumava maconha e um homem cagando. A escritora pensa na dor e na delícia de criar intimidade com um lugar.

O elefante Sandro precisa de um novo lar. A escritora assinou de manhã uma petição online para que Sandro seja transferido do zoológico de Sorocaba para um santuário de elefantes. Sandro vive sozinho há dois anos, desde que sua companheira, a elefanta Haisa, faleceu. Uma vida de confinamento, dois anos de solidão. Sandro ainda é um elefante?

Ela tem sentido como se vivesse na terceira pessoa, observadora externa da própria vida. Algumas palavras passam pela cabeça dela: alheamento, desconexão, psicose, escritora?

Um grupo enfurecido de quero-queros — os quero-queros são os únicos pássaros que a escritora já viu ficarem brabos — começam um fiasco sonoro quando a cachorra se aproxima deles. A cachorra às vezes corre para espantá-los, mas noutras vezes os ultrapassa lentamente, concentrada em cheirar rastros na grama.

A cachorra nunca late à toa. É impressionante. Quando late, é contra algo ou alguém. Ela desperdiça imensurável quantidade de energia, correndo em círculos dentro de poças e atrás de pássaros que não alcança, mas nunca desperdiça um latido. Isso talvez diga algo a respeito da voz, a escritora pensa, e por isso economiza o grito.

Julia Dantas

Nasceu em Porto Alegre (RS). É editora, tradutora e doutoranda em Escrita Criativa pela PUCRS. É autora de Ruína y leveza (Não Editora, 2015) e organizadora de Fake Fiction: contos sobre um Brasil onde tudo pode ser verdade (Dublinense, 2020).

Rascunho