Está acostumada a caminhar neste parque. Já sabe onde o chão alaga e onde está a carniça de um animal não identificado e peludo na qual a cachorra gosta de se esfregar. A escritora acaba por preferir desviar da carniça e andar de galocha no terreno pantanoso do que voltar pra casa com a cachorra fedendo a bicho morto.
Raramente se deparam com outras pessoas. O parque é enorme, e a escritora e a cachorra buscam caminhar no lado interno do lago, onde podem abrir mão da coleira e do estado de alerta. Por isso, andam em silêncio. Às vezes, a escritora pensa que aquele seria um bom momento para soltar um grito sem sentido, um avulso aaaaaahhhh sem ninguém ouvir, só pra ver como é, ver o que acontece, se é que acontece.
Nas águas do PacĂfico Norte, uma baleia grita em vĂŁo. NĂŁo grita: canta, corrige a escritora. Mas Ă© grave demais: as outras baleias cantam numa frequĂŞncia entre 12hz e 25hz, e ela canta a 52hz. NĂŁo Ă© que as outras baleias a ignorem, Ă© que elas nĂŁo tĂŞm a capacidade de escutar o seu chamado. SĂŁo surdas para a baleia solitária nĂŁo por escolha, mas por tragĂ©dia.
A escritora observa o homem que se aproxima do bambuzal do outro lado do lago. Escondidos naquele bambuzal, ela já viu um homem que usava o celular, um homem que contemplava o cĂ©u, um homem que fumava maconha e um homem cagando. A escritora pensa na dor e na delĂcia de criar intimidade com um lugar.
O elefante Sandro precisa de um novo lar. A escritora assinou de manhã uma petição online para que Sandro seja transferido do zoológico de Sorocaba para um santuário de elefantes. Sandro vive sozinho há dois anos, desde que sua companheira, a elefanta Haisa, faleceu. Uma vida de confinamento, dois anos de solidão. Sandro ainda é um elefante?
Ela tem sentido como se vivesse na terceira pessoa, observadora externa da própria vida. Algumas palavras passam pela cabeça dela: alheamento, desconexão, psicose, escritora?
Um grupo enfurecido de quero-queros — os quero-queros são os únicos pássaros que a escritora já viu ficarem brabos — começam um fiasco sonoro quando a cachorra se aproxima deles. A cachorra às vezes corre para espantá-los, mas noutras vezes os ultrapassa lentamente, concentrada em cheirar rastros na grama.
A cachorra nunca late Ă toa. É impressionante. Quando late, Ă© contra algo ou alguĂ©m. Ela desperdiça imensurável quantidade de energia, correndo em cĂrculos dentro de poças e atrás de pássaros que nĂŁo alcança, mas nunca desperdiça um latido. Isso talvez diga algo a respeito da voz, a escritora pensa, e por isso economiza o grito.