🔓 A Bahia tem um jeito

Em um caso de “paixão à segunda vista”, o cronista saiu da Bahia condenado a todas as suas lembranças e saudades, aos seus sabores e dissabores
Ilustração: Tereza Yamashita
19/01/2022

1.
Muitas das minhas paixões nasceram de uma segunda chance. No primeiro encontro, aversão. Que logo se transforma no seu oposto, como se o salto entre duas calçadas não tivesse a rua no meio. Uma passagem breve, embora abrupta.

Foi assim com o Bip Bip, o querido boteco de Copacabana. Na visita inaugural, jurei nunca mais voltar lá. E contudo é o que tenho feito, quase que semanalmente, há pelo menos vinte anos. Sorte a minha.

Salvador é outro desses casos de amor à segunda vista. Conheci a capital baiana em 2002, numa viagem a trabalho que me permitiu algumas escapadas. Elevador Lacerda, Mercado Modelo, Pelourinho, Itapuã. Voltei sem entender por que diabos as pessoas a elogiavam tanto. Pareceu-me mais um cenário do que uma cidade.

Poucos anos depois retornei e a impressão foi radicalmente distinta. Pude sentir, nos longos passeios, a Bahia dos livros de Jorge Amado, das canções de Caymmi, das gravuras de Carybé e Calasans Neto. Não como dimensão mítica ou estetização “folclórica”, mas num espelhamento — a literatura, a música, a arte visual traduziam tanto a geografia quanto aquela que define a gênese de uma cidade: sua alma. Assim tem sido a cada revisita.

2.
Há uma tradicional máxima do samba segundo a qual, em terreno novo, devemos pisar devagarinho. Ela vale igualmente para as cidades em que aportamos. Antes de fazer afirmações categóricas — tal lugar é isso ou aquilo —, convém viver efetivamente seu cotidiano. Primeiro, pisar o chão devagar.

A Salvador dos meus afetos não é, portanto, a de alguém que nasceu ou mora lá. Não sei quanto o “estado de férias” colabora para essa sensação constante de descoberta. Se a cidade me oferece os encantos habituais — o sorvete de doce de leite com queijo d’A Cubana, a orla que margeia a Baía de Todos os Santos, os orixás iluminados no Dique do Tororó, a Casa do Rio Vermelho —, há sempre uma delícia nova que se apresenta, como o vatapá guardado dentro do bolo de feijão-fradinho. A impressão é de que o tempo se refestela numa rede. E balança, sem afobação.

Na recente viagem, agora no início de janeiro, foram poucos dias. Mas o suficiente para desvendar uma cidade que ainda não havia mapeado. Conheci o Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, primeiro templo de candomblé a ser tombado como patrimônio histórico brasileiro. Provei a poqueca, mistura de camarão, coco de licuri, coentro e pimenta malagueta, servida no interior de uma folha de bananeira no restaurante Dona Mariquita. Percorri as ruas singelas de Santo Antônio Além do Carmo — e um bairro com esse nome, convenhamos, já nos ganha de cara.

3.
Pra não dizer que só falei de flores, trago um acontecimento do primeiro dia de viagem. Feito o check-in no hotel, me sentei no Boteco do Caranguejo, na Barra, com o intuito de almoçar. Ainda bebia a primeira cerveja quando ouvi o furdunço. O menino, com uma garrafa quebrada na mão, dizia que ia matar o segurança do restaurante. Logo levou uma banda e caiu no chão.

Algo havia acontecido antes, claro. O fato gerador da confusão. Mas o presente tomava tudo. Então uma mulher que saía da praia interveio. Deteve o garoto, que ainda assim insistia: “Vou matar ele! Vou matar ele!”. O segurança, a essa altura, desaparecera no fundo do bar. A polícia foi chamada, formou-se uma roda de curiosos. A mulher berrava que vidas negras importam, discursava, sem perceber que, na queda, o menino se cortara. Sua mão sangrava abundantemente. Ele precisava lavar o machucado, talvez levar pontos.

4.
Há quem vá para uma cidade brasileira querendo fugir do Brasil. A esses, Salvador nada tem a oferecer. Assim como no Rio, é possível encontrar na capital baiana, lado a lado, a dor e a delícia que nos constituem. A brisa quente que carrega o cheiro do dendê, perfumando a tarde, e um garoto preto apanhando de um segurança igualmente preto. No mesmo ponto, na mesma hora.

5.
Meu amigo Luiz Antonio Simas costuma afirmar que a chibata que bate no lombo e a baqueta que bate no couro do tambor são faces de uma única moeda. Filha da diáspora, Salvador traz essas marcas de padecimento e reinvenção.

Os corpos desfilam pela praia sem vergonhas — barrigas, celulites, gente como a gente —, dançam alheios às prisões da estética ou do pudor.

Na noite de réveillon, fui tomado pela imagem do homem que remexia os quadris, acompanhado apenas de um copo de plástico, na calçada da Praia da Barra. Aproveitava a música do entorno, qualquer que fosse. Uma festa em si.

Dois mil e vinte dois respirava seus primeiros minutos e eu, inebriado de espumante e de uma estranha alegria, pensava: o Brasil é mesmo capaz de transformar a gambiarra em arte.

6.
As crônicas de Antônio Maria foram uma companhia constante ao longo da viagem. Pernambucano radicado no Rio, Maria morou em Salvador entre 1944 e 1947, quando era diretor-artístico da Rádio Sociedade da Bahia. Alguns de seus textos ecoam essa experiência.

O cronista fala da “incomparável doçura do povo”, marca que distingue ainda hoje o soteropolitano. Da Baixa do Sapateiro, das festas de rua. “Nenhuma cidade tem tantas”, diz. Saúda a galinha do Manoel, “a melhor comida de toda São Salvador”, e evoca a temporada em que poeta Pablo Neruda esteve por lá. “O céu azul, as comidas de azeite eram de ouro, duas, três vezes por dia”, conta o escritor, antes de se lamentar: “Saí da Bahia condenado a todas as suas lembranças e saudades”.

Entendo o sentimento de Maria. Daí recordar o estio recente, ainda que no âmbito da palavra, quase sempre precário. Mas as viagens acabam e é preciso também encerrar esta crônica. A bem do leitor, que seja então como finda o dia. Onde? Lá mesmo, em Salvador. Com o pôr-do-sol do Porto da Barra. Se há um mais bonito no mundo, eu nunca vi.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho