Não conseguiria descrever a minha aflição ao tentar escrever a palavra “português” e hesitar.
Aconteceu há alguns meses e diante de tal crise, minha perplexidade e convicção de que eu sofria de algum problema neurolĂłgico irreversĂvel. Marquei a ressonância magnĂ©tica certa de que encontrariam algo muito comprometedor lá dentro. Aliviada porque nĂŁo podem ler os pensamentos, torci para que encontrassem uma cabeça vazia. Iris Murdoch falou sobre a frustração de lutar pela palavra enquanto ia, aos poucos, perdendo a capacidade de fazer uso delas. Para quem escreve deve ser a morte. Foi a primeira vez que me deu um branco desses e, brincadeira Ă parte, talvez seja o primeiro sutil sinal de que o futuro nĂŁo nos traz esperanças, mas o fim.
Mas na tentativa de me acalmar, pensei no conceito de portar duas lĂnguas dentro de si. Equivocadamente, há quem veja essas aquisições linguĂsticas como adição, mas estou de acordo com Yoko Tawada que disse numa entrevista que lidar com duas lĂnguas Ă© subtrair. É preciso frequentemente esvaziar o lugar de uma para dar lugar Ă outra. As lĂnguas sĂŁo animais completamente distintos e aĂ está o problema com a tradução: quanto mais se aproxima um texto original de uma outra lĂngua alvo, mais complexo o texto vai se tornando. Isso nĂŁo se aplica apenas Ă tradução de literatura. Falo de algo mais rotineiro como, por exemplo, a minha casa. NĂŁo há nada no mundo que me convença de corrigir meus filhos, os dois, que, ao acordarem dizem sem falhar “bom dia, amor de meu vida”. Um nĂł nessas cabeças inglesas com seus artigos neutros.
E se eu introduzisse a eles o todes, com o objetivo de lhes facilitar o emprego correto do artigo? Logo eu desisto, pois ainda gostaria de usar o recurso do a e do o, se me derem licença, por favor. Muitas vezes, sou questionada de maneira insistente, quando minha filha não vê sentido em usar um rabo de cavalo, já que é menina e deveria, então, usar uma raba de cavala. Tento explicar com exemplos de a mesa, a faca, o copo, o prato. Mas ela logo chega no tapete e, para piorar, no sofá que me tira o chão, além da razão. Quanto mais crescem, mais eu acredito que devem entender e empregar o trem do mineiro. Pré-adolescentes ingleses falam stuff para absolutamente tudo, me remetendo diretamente a esse recurso regional que se casa tão bem com a reconhecida obsessão inglesa por ferrovias.
Mesmo convivendo, as lĂnguas talvez nĂŁo coexistam no sentido de simultaneidade dentro de um Ăşnico corpo. É preciso esvaziar uma para se encher da outra. Pode ser que a Ăşnica coexistĂŞncia possĂvel seja no diálogo, se o pensarmos como algo Ăşnico, mesmo que feito de interlocuções. Mas tambĂ©m Ă© verdade que depois de muito tempo convivendo com outra lĂngua, penso nas aulas de LinguĂstica. Significante e significado começam a transpor fronteiras. Ainda nĂŁo penso em table quando vejo uma mesa, mas se preciso fazer uso de algum xingamento, fuck vem muito mais naturalmente do que a sua versĂŁo em portuguĂŞs. (Fui uma moça muito catĂłlica.)
A minha cabeça está vazia. Nada foi detectado na ressonância, o que Ă© um alĂvio. Enquanto eu estava deitada naquela maca para fazer o exame, pensei em portuguĂŞs, pensei em inglĂŞs, mas cada um de cada vez, ao mesmo tempo. Era algo coexistente porque eu dialogava comigo mesma.
Semanas antes, na cozinha de casa, minha filha, inglesa, chega depois de um dia na escola.
– MĂŁe, acredita que a Alice nĂŁo vai mais fazer educação fĂsica?
– Uai!
– Porque ela fica muito cansada.
(CoexistĂŞncia e esvaziamento: I rest my case.)