🔓 30 de outubro

Apesar dos escombros produzidos nos últimos quatro anos, é preciso coragem para escalar as muralhas, suplantar os mais altos edifícios e vencer as montanhas
Ilustração: Eduardo Mussi
30/10/2022

Notícias chegavam de todas as regiões do Brasil. O último sábado passou incólume. Um sábado como qualquer outro desde O Grande Terremoto. Acontecera antes em Lisboa, na Cidade do México, em Santiago do Chile, Tóquio e, sem embargo de dúvidas, em Moscou. Foram tantos os escombros, decorrentes do Abalo, que a associação apressada a uma Guerra Mundial foi até perdoada, mesmo desconfiando-se de certos meios de comunicação não oficiais. No entanto, como em tudo na história da humanidade, o passar irredutível dos anos fez com que a imagem dos destroços se tornasse não só habitual, mas uma parte a compor e a definir essa nova realidade. O que não se esperava, e se constituiu em motivo maior de surpresa, foi aquela ausência.

Do Pará, Anderson e Carlos relataram que a tarde de sábado em Alter do Chão estava gelada e um vento hostil varria as barracas das margens do Tapajós, impedindo-os de apreciar a natureza e matar a prolongada sede após uma semana de trabalho árduo.

Na Cidade Maravilhosa, ainda pela manhã, Carlos Rabaça subiu o Morro da Conceição até o Observatório do Valongo. Pretendia ministrar uma aula prática, apresentando aos seus novos alunos a Luneta Pazos e explicar-lhes como se dava seu funcionamento. Infelizmente, os alunos foram impedidos de subir em razão de uma inesperada nuvem de insetos voadores a barrar-lhes a passagem.

Em Goiânia, Roberta tentava falar com Ademir Luiz por telefone, mas tanto o seu número quanto o de todos em seu trabalho apresentavam problemas de “falha de comunicação”. O almoço em Anápolis com o realizador de filmes trash, marcado para a quarta-feira, teria de ser adiado. Seriam obrigados a encontrar um substituto para a entrevista da semana com urgência. Todavia, o número digitado não chamava.

Reginaldo Pujol se preparara para as exaustivas horas em que passaria imóvel no ateliê de Pena Cabreira, em Porto Alegre. Posaria para um retrato, em grandes dimensões, destinado à série Visíveis. Ao chegar, Pujol travou um papo rápido com Pena. Em seguida, beberam uma taça de vinho para descontrair. Quando estavam prontos para a pintura, Pena descobre que seu lote de carvões, ao ser tocado, virava pó e os tubos de tintas estavam duros feito pedra.

Do interior da Bahia, um aroma de origem desconhecida fez com que Victoria se desinteressasse da ração e constantemente eriçasse os pelos ao passear pelos aposentos da casa. Almir Zarfeg não sabia mais o que fazer. Trocara a marca da comida, acrescentara um caldo de carne de que ela sempre gostara, mas nada de sua gata mudar o comportamento. Pensava agora em pedir uma licença na repartição e viajar com Victoria para Minas.

Até minha amiga Emily, aqui em Salvador, disse que não sentia mais vontade de fumar à janela do seu apartamento, bebericar um cálice de licor e apreciar as cores do céu, enquanto a Praça do Relógio São Pedro fervia em movimento lá embaixo. Tudo lhe parecia pálido, sem sentido.

Desde O Grande Terremoto, as cidades pareceram estar sitiadas ou cercadas por muros. A aridez do Planalto se espalhou, mudando o clima no país, deixando-o maluco, fora do centro. E veio o último sábado e a Primavera não chegou. Houve gente cética a questionar se essa estação haveria existido realmente, se não fora uma invenção dos imperialistas americanos reforçada pela máquina de Hollywood.

Hoje, no último domingo do mês de outubro, informo a vocês que, entre tantos entretantos, entre tantos desfalecimentos, anúncios de altas da bolsa de valores, estrondos de feras rugindo e ameaças de armas espaciais, eu estava sossegado na minha varanda quando uma cigarra cantou.

Parece algo incrível, não é mesmo? Não choveu pouco antes, uma flor não brotou no asfalto, o céu não se abriu e eu não ouvi clarins anunciarem anjos. Não importa. Eu ouvi seu canto. E, ao ouvi-lo, para o desespero dos filósofos cínicos e dos profetas mais pessimistas, lembrei-me de que, para avistar um horizonte, é preciso primeiro erguer a cabeça. E, caso o gesto não seja de todo suficiente, tenhamos coragem para escalar as muralhas, suplantar os mais altos edifícios e vencer as montanhas. Uma vez no topo, é possível que enxerguemos a linha do mar por trás dos escombros.

Lima Trindade

Nasceu em Brasília (DF), em 1966. É mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou o romance As margens do paraíso (2019), a novelaO retrato ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014) e o livro de contos Corações blues e serpentinas (2007), entre outros.

Rascunho