Verdades e mentiras em torno de um prêmio Nobel (1)

Não se deve publicar um original não liberado, de modo muito claro e explícito, pelo autor
01/12/2009

“A minha anotação original da idéia, fixo-a, aqui, como ela veio de Alba, nem mais nem menos: Um escritor cego dita um livro para uma nova secretária que escreve outra coisa, diferente. Ele vem a gostar mais daquilo que ela produziu, por si mesma, com afoiteza, é verdade — porém com uma graça, uma leveza, um toque do que faltava naquela altura da vida do velho homem fascinado por…

Alba não saberia o que fazer, eu acho, de um argumento assim, tão simples quanto metafórico sobre o artifício da literatura (mais do que sobre o amor despertado dessa forma no homem retirado, além de limitado pela cegueira), o recurso da vida imaginativa na qual se refugiou, longe das paixões reais e mesmo da rotina da sua família de comerciantes bem sucedidos… negociando com o quê? (RESOLVER)”

Essa anotação de Graumann — por sua vez, sobre a própria anotação — me foi fornecida por alguém que teve acesso aos papéis de Lúcio (da época da Ledig House), deixados pelo escritor em Nova York (e não em Michigan, onde foi encontrado o original Intruder in the blinder).

Alba de Céspedes eu conheci em Roma, em 1976. A atmosfera da capital italiana há três décadas, eu tentara captar em A cabeça no fundo do entulho, livro que — ironia das ironias — havia decidido dedicar a Graumann (cheguei a redigir a dedicatória, no original digitado em 1988), os anos passariam, o livro só viria a ser editado em 1999, quando já não continha a dedicatória desaparecida da última versão do livro (impressa em computador). A dedicatória eu a removi por graça de uma intriga dessas que logram ferir as admirações e as amizades. A que me fez retirá-la foi uma assim, bem armada, feita para causar um dano qualquer, ou a satisfação de alguma inveja menor, que se contenta com pouco — se não puder fazer algo mais calculado, separando pessoas, cancelando a estima em que se tem um colega, um homem bem situado (numa palavra final sobre isso, digamos que o jornalista Mauro Portela sabe bem ao que me refiro, ele que foi o “guardião” das últimas horas de Lúcio, no hospital recifense ao qual me dirigi, tão logo tive notícia da internação do escritor com quem não chegara a me “reconciliar”).

Hoje, eu sei que Lúcio não havia feito nada contra mim, nada daquela manobra inventada em detalhes (eu devia ter desconfiado da profusão de detalhes), mas já é muito tarde para qualquer “conserto” que não seja apenas aproveitando a oportunidade deste texto que eu estou escrevendo a pedido do editor de A intrusa na sombra (uma invertida “homenagem” a Céspedes?) no Brasil, como iluminação da obra traduzida também a seu convite. Fique logo esclarecido que conheci Lúcio Graumann no Recife, em 1976, num programa de entrevistas na TV Universitária, quando o escritor gaúcho esteve pela segunda vez na cidade, a fim de participar de um congresso de escritores, coisa que ele afirmava detestar. “Por que veio, então?” — eu não perguntei (devia ter perguntado?), apenas pensei na hora da pequena confissão que ele não fez no ar, ninguém a faria, e eu não simpatizei muito com a minha admiração “ao vivo”, a vida é feita de coisas assim, desencontros e desacertos que se leva tempo a ajustar, eu era mais moço e mais impaciente (se não mais intolerante) do que sou hoje.

Tenho pouco a dizer sobre a entrevista. Fui participar dela, verdade seja dita, meio de má vontade, até porque o convite fora feito em cima da hora, dando a impressão de que estavam “tapando o buraco” com a minha convocação para compor uma bancada em frente de Lúcio sentado numa poltrona alta e (a qual deixava o entrevistado com a calça erguida sobre o pedaço de pele branca da perna cruzada sobre a outra, acima das meias. Você, então, imagina o entrevistado, no seu hotel, calçando essas meias, antes de seguir para o estúdio onde os refletores lhe iluminam a falta progressiva de cabelo mostrada pelo olho imparcial das câmeras — o que é sempre uma surpresa e até mesmo um choque no meio de uma resposta)…

Eu seguira para a TV pensando que eu talvez fosse falar sobre Alba, na conversa com o escritor-residente, que a conhecera bem, nos Estados Unidos, mas terminou sem que eu mencionasse a Céspedes, no ambiente gelado dos estúdios da TV, vendo tanta gente que puxava qualquer assunto com Lúcio, antes de se acender o luminoso vermelho NO AR…

O futuro “intrigante” estava presente. Com vergonha, confesso que viria a acreditar nele — uma pessoa conhecida no meio literário nacional. Foi algum tempo depois, e a verdade é que não dei chance para se desfazer aquilo que o tal sujeito armou com palavras (com que mais poderia armar?) mentirosas ditas ao ouvido certo, no melhor momento, em circunstâncias adequadas e fazendo parecer que era “obrigado” a isso, por algum imperativo ético que os mal intencionados sempre invocam como seus maiores motivos.

Por que não escrevi para Lúcio Graumann — simplesmente? Talvez uma carta não fosse o meio ideal para passar todas as nuances da mentira que me haviam dito, quase de orelha para orelha, quer dizer, de boca “ética” para orelha ingênua. Na correspondência, as palavras emperram, ficam duras ou acabam amolecidas por reticências escritas e não-escritas… Neste caso lamentável, depois de abaixar-me para recolher todas as pontas de flechas envenenadas, talvez melhor teria sido telefonar, ligar para a residência de Lúcio, disposto a pagar todos os minutos da ligação interurbana, a fim de expor o arco total da ignomínia murmurada como dele, Graumann, ou envolvendo o seu nome de maneira a me levar a pensar bem do intrigante (como “incapaz” de fazer uma referência direta etc.) e mal dele, Lúcio Graumann, o escritor difícil, o homem de caráter reservado e tudo o mais. Ficava, assim, apenas sugerido — segura e eficientemente — o absurdo de “mau caratismo” que o escritor teria mostrado na comissão julgadora de um prêmio nacional que me dispenso de nomear, até porque é uma das poucas distinções literárias respeitáveis deste país.

Enfim, os intrigantes são sutis (e, vez ou outra, bem sucedidos).

Teria sido o mais sensato: dizer tudo, bem claro, falar sem rodeios, e ir direto ao núcleo nebuloso da falsidade plantada com ar distraído: “Lúcio, me disseram que você votou assim e assado, no prêmio tal, por achar que”…

Hoje, eu sei a extensão, a sutileza da mentira, o absurdo e a audácia da coisa que, relatada a Graumann, sem dúvida o teria surpreendido, provocando-lhe a indignação que o levou a reagir contra a presença de Sérgio Paranhos Fleury numa redação paulista pronta a servir cafezinho com conversa temerosa do delegado de olhos gelados e mãos suadas.

Porque foi Lúcio Braun Graumann um homem reto — difícil, porém reto — e corajoso, a trilhar a senda reta, sem desvios ou bifurcações. Numa carta — cujo original me foi presenteado por Leopoldo Simões —, ele confessa que invejava a herança legada por Oliveretto de Fermo (segundo um poema de Manuel Machado): Deixou um quadro, um punhal e um soneto. “Maquiavel nos conta a história desse assassino elegante e discreto (Oliveretto foi enforcado em Sinigaglia, por ordem de César Bórgia)”. Quando Lúcio me escreveu essa carta — só recebi duas, dele — a intriga ainda prosperava, e a lembrança de Oliveretto parecia perfeita, como se ele soubesse… o que não poderia saber (não naquela altura)… Na verdade, ele menciona a herança do italiano do tempo dos Médicis ao falar de epitáfios, curiosamente. Lamenta a impossibilidade de usar, como tal, o verso do sevilhano (o outro Machado da grande poesia espanhola), porque não era pintor, nunca possuíra um punhal e seus livros todos — ironiza — não valiam um soneto perfeito, que restasse na memória com as sonoridades estranhas de um Augusto dos Anjos (o poeta brasileiro que, para ele, “garantira-se através do som, do gosto nacional por complicações sonoras, violonistas-contorcionistas, e artifícios de toda ordem”)…

Voltando à intriga: quando o editor da Francis me pediu para traduzir — e, depois, prefaciar — este A intrusa na sombra, eu não poderia deixar de ser completamente sincero com o editor do inédito descoberto por Donald Jay Lederer: relatei o fato, a existência de um mal entendido que havia azedado as chances, digamos, de uma relação amistosa com Graumann, e esclareci tudo, disse quem fora o autor do “ruído” na minha frustrada relação possível com o escritor gaúcho que eu conheci num estúdio de TV, a quem fiz algumas perguntas e de quem me despedi sem cercá-lo como outros que, terminado o programa, foram lhe dizer que o admiravam (eu também, mas não era imprescindível que ele soubesse disso), trocar endereços e dizer qualquer coisa sorridente com o “escrevi isso”, “publiquei aquilo”, “pesquiso o folclore”, “sou seu leitor”, “onde se compra o seu último romance?” (nas livrarias, ora) etc.

Informei de tudo ao editor e, ainda, da minha opinião sobre a publicação de inéditos, de obras inacabadas de qualquer autor, seja ele prêmio Nobel, prêmio Gallegos, Pulitzer, Mandacaru-no-cu, o que for. Usei exatamente essas palavras, e assim mesmo permaneci o escolhido — com muita honra — para escrever o prefácio do livro retirado do limbo do tal arquivo (qual, precisamente?) de “papéis dos anos 60, 70 e 80 consultados por alguns poucos brasilianistas”. Retirado de lá, foi objeto de disputa e editado, nos EUA, com erros crassos como o da epígrafe, justamente da forma que este prefaciador execra, pela pressa, pela cobiça e pela vaidade de chegar na frente das outras editoras.

O que eu penso é muito claro: NÃO SE DEVIA PUBLICAR UM ORIGINAL QUE O AUTOR NÃO LIBEROU, DE MODO MUITO CLARO E EXPLÍCITO, PARA A PUBLICAÇÃO, sim. Um dos casos reprováveis mais recentes é o da publicação do Laura original de Nabokov, projeto de romance que o autor de Lolita deixou apenas rascunhado em 138 fichas antes de morrer, em 1977. Elas deveriam ter virado cinza, de acordo com o desejo do escritor, porém seu filho Dmitri não seguiu a orientação do pai, e o livro está aí, expondo apenas a ossatura da obra de um artista obsessivo com seus trabalhos compostos com extremo rigor e inúmeras versões, antes de dar por finalizado um original literário pronto para publicação. Isso foi preocupação até do nosso pedestre Fernando Sabino, nos seus últimos meses de luta solitária contra o câncer, na rua Canning. Após a morte do cronista, no seu testamento se encontrou a proibição da publicação de “inéditos” de qualquer tipo.

Concordo com uma disposição testamentária clara assim. Também acredito que Alba de Céspedes colaborou pouquíssimo com o Ferragante — do qual só se conhecem três capítulos ruins. E a Alba que eu conheci não teria condições de “colaborar” (no caso deste livro) com mais do que a “sugestão” do título. Uma senhora americana que conheceu Alba e Lúcio — ela foi socorrida, por este, num acidente em frente da Ledig House —, revelou-se uma boa fonte de informações a respeito do período em que Graumann escreveu A intrusa na sombra “em parte na instituição nova-iorquina” (onde não foi coincidência que ele acabasse se sentindo justamente como um “intruso”, naquele meio confortavelmente medíocre, de escritores seguindo cartilhas como carneiros aprendendo a dar as marradas mais ou menos “certas”). Mais do que isso: o tempo todo da minha visita — desde que ela abriu a porta, ajeitando uma mecha de cabelo grisalho com certa vaidade ainda coquete, em face da visita masculina? — pensei no quanto se parecia (descontados os anos) com a leitora do “anel exterior” que Paulo de Tarso Correia de Melo aponta, no seu ensaio sobre O mantenedor de visibilidades.

À vista do que ela me disse — sem autorizar a divulgação do seu nome —, é possível deduzir que não terminou muito bem a “amizade” entre ambos (Lúcio e Alba, bem entendido). Agora, recentemente ficou-se sabendo que eles não se conheceram em Hudson, mas em Roma, dez anos antes, quando a escritora feminista trabalhava na redação de Epoca. Parece justo supor que Alba teria se apaixonado, então, pelo jovem brasileiro na sua primeira temporada na Europa, entre ruas de pedras redondas e lambretas dos jovens subproletários urbanos de Acattone. Outros insinuam que Alba era lésbica e não teria interesse em brasileiro jovem ou velho, antes e depois de conhecer Lúcio numa época febril, quando tudo ainda parecia ir acontecer no mundo. A presença do passado recente intensificava as coisas — e havia um futuro jorrando da pressa e do resto de esperança da libertação de Paris, ainda, das italianas de vestidos de casa atraídas para a rua, a fim de saudar soldados cansados e sujos. Descia-se das colinas, na madrugada, com o gosto de melancias geladas no meio da Mattinata arriscada por tenores improvisados. O medo dos alemães apenas começara a passar, para alguns, enquanto outros seguravam velhos rifles roubados dos salões de casas senhoriais arrombadas com os dedos sem as unhas arrancadas pelos boches, enquanto outros estavam mortos “no meio das desgraças da Itália” (como Alba escreve, em Albor). Conforme ele descreve, “o sofrimento entorpece, como o frio do metal, as notícias de morte e a fome continuada nos lugarejos distantes das montanhas fartas, de aldeões entesourando salames e conservas, vinho e má consciência que não era propriamente “má”, porque o campo sempre havia sofrido debaixo do tacão do patrão e das tropas, nacionais ou estrangeiras”.

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Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho