Poetas admiráveis

Fernando Monteiro escreve sobre três poetas que o fascinam no cenário da poesia brasileira atual
Nina Rizzi. Foto: Mariana Botelho
01/09/2012

Zona proibida do ser
Nina Rizzi

“Esse est percipi”— Berkeley

Um punhado de extratos pra se comer das mãos

— Olha, minha vida bela como coisa acumulada!
— Olha, minhas palavras forjadas por bem menos que a carpintaria!

… Eu existo.

Mas basta um espelho para escarnecer o mundo-dentro.
Pequeno-mundo, a verdade se deita ao monstro do nada.

Debaixo do nome
A jaula e o silêncio.

Três poetas me fascinam, no cenário da poesia brasileira atual: as paulistas Mariana Ianelli e Nina Rizzi (atualmente radicada em Fortaleza) e a potiguar Marize Castro, esta da geração imediatamente anterior às duas primeiras.

Neste confessado fascínio, nenhum critério geracional. Elas três têm mil, dois mil, três mil anos de idade poética, no seio de uma civilização algo esgotada, na qual poetas homens — eu noto — estão perdendo a capacidade de me emocionar, com versos rasteiros como estes do Antonio Cicero:

Eram palavras aladas
e faladas não para ficar
mas, encantadas, voar.

Nenhuma besteira dessas na poesia de Castro, Ianelli e Rizzi. Esta, a Nina helênica (com e sem “h”) é uma pagã retardatária no mundo que levou o altar de Pérgamo para a frieza de um museu de Berlim cheio de turistas japoneses de bermuda não tirando fotos — ordeiramente —, porém passeando com a sensaboria de que são capazes turistas japoneses sorridentes pra tudo (até mesmo para o dentista com um sinistro sorriso de boticão).

Nina Rizzi tem algo de uma Emily Dickinson que houvesse passado uma estação no inferno e no paraíso de uma aldeia Massai de tambores quase calados pela TV nas aldeias de mulheres milenares carregando a água para guerreiros preguiçosos e sem ter o que caçar (ou contra quem guerrear) num mundo sem água para os elefantes enfurecidos que, um dia desses, investiram contra aldeias com a fúria sagrada dos animais — aqueles animais cuja solidão nós deixamos de compreender porque estamos ainda mais sós do que eles, entregues a terra desolada do mundo intranscendente para o qual a poesia é, ou deve se tornar, uma coisa “bonitinha” (como os versinhos do Cicero) ou então não é nada. Pelo menos para os homens ocos da waste land, é assim, no hodierno mundo de romances ruins, arte esvaziada e intelectuais de shopping limitados a admirar filmes de Woody Allen escalados para não dizer nada, em multiplex gelados, sobre cidades necessitadas de turistas com o condão de poluir todos os santos lugares (e não só os japoneses, coitados!). O mundo do falecido Steve Jobs (que o inferno o guarde!, e não permita a reencarnação)…

Voltemos à poesia — porque “reencarnação” não é poesia aqui no nosso lar pagão, com pedras no lugar dos altares antropomórficos de oração:

Nina é africana da Calábria — e isso já significa que o seu sangue é mais antigo do que o teu, leitor desavisado e admirador de Jobs (e que deve estar puto comigo e meu pertencimento aos tablets de argila, aos computadores feitos de barro e vendidos nas feiras do Turquistão, de Caruaru e Campina Grande).

Na também grande Campinas de São Paulo, Nina nasceu (1983) para ser poeta e cigana, tecendo casidas que Emily Brontë assinaria (alguém aí conhece a bela poesia da outra Emily, reunida num único livro — O vento da noite — que o injustamente esquecido romancista Lúcio Cardoso traduziu, em 1944, para a José Olympio?), caso a solitária das charnecas houvesse chegado ao tempo agônico do Lorca assassinado em tempos de loucura homicida:

Casida para Federico
Minhas mãos buscam o que a rosa declina
a aurora, a sombra, carne e sonho da rosa

o verdevermelho agônico, absoluto
todo sangue que fere.

eu não quero mais que uma mão com uma rosa
sete palmas de pétalas sob o perpétuo e triste vento.

Eis uma poeta no domínio da sua linguagem — com uma força vital que deve vir diretamente da Grande Deusa esquecida nos montículos de zigurates que aplainamos para construir cemitérios de prédios de apartamentos lotados de baratas e comida enlatada e caixas de papelão de pizza com sabor de isopor dos sábados “que suam” antes do domingo mortal das TVs ligadas. A poesia de Nina Rizzi é poesia de salvação — eu diria isso se a frase não fosse se parecer com as escatológicas palavras de pastores da desordem religiosa (?) vociferando como empregadinhos gordurosos do Moloch que nos domina e controla: o Mercado.

Fora de mercado está também a poesia intimista — belamente intimista, e não daquele tipo de intimismo que lembra metades de maçãs apodrecidas num pires — de Mariana Ianelli, que herdou do avô (Arcangelo, grande artista) igualmente o gosto minimalista pelo menos que é mais. A poesia da Ianelli é diferente da de Rizzi: se expande para universos interiores como se pudesse entrar no quarto de um hotel pintado por Edward Hopper e lá ficasse olhando o passado e o presente por alguma janela fechada. É a poesia que Bartleby teria escrito se ele quisesse fazer alguma coisa, em vez de (sabiamente) preferir não fazer nada:

O encontro
Dá-me um acontecimento
E eu nada direi sobre isso.

O crime perfeito
Será meu segredo
Fechado por dentro
Em silêncio
Como um vício.
[…]

Mariana não reduz a beleza a bobagens “encantadas” e “voa” para bem longe do fácil, como Valéry levitava no chão aquático do cemitério marinho. Não poderia lhe fazer maior elogio — sinceríssimo — do que aproximá-la do rigor e da medida exata do poeta francês responsável pelas melhores lições aprendidas por João Cabral de Melo Neto.

A outra poeta que eu chamo para o território exíguo da minha admiração (atenção: pessoal) no estreito cenário da atual poesia brasileira é uma moça de expressão tão sensual quanto espiritualizada: Marize Castro, nordestina do Rio Grande do Norte de Zila Mamede, tecendo suas rede finas de jangadas lançadas ao mar das palavras, em busca de amores que ela soube amar, perder, ganhar e transformar em versos inspiradíssimos:

Erma
Recolho-me tão profundamente
que tudo me alcança:
mísseis, desastres, lanças.

Recostada ao rosto de Deus
pedi-lhe a fé perdida
a palavra antiga — invencível.

Ele me deu o mar no nome
e uma fome borgeana, dizendo-me:
Eis sua herança, jovem senhora
de velhíssima alma e furiosas lembranças.

Marize Castro, ao lado da atividade de poeta, tem editado poesia (de outros poetas) e também exercido uma forte influência sobre os que vão procurá-la, por admiração, em busca da “régua” que está faltando para a nossa lírica, hoje saindo principalmente do reino anárquico dos blogs para o silêncio dos que ignoram a Poesia — esse pecado mortal do nosso tempo já começando a pagar caro por isso.

Bem, são essas as três poetas que eu admiro, mais que outras e outros que estão (ou não estão) entre os quase dez mil poetas brasileiros vivos listados pela Leila Míccolis.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho