Na primavera de Córdoba, ano passado, uma exposição evocava dois poetas de duas gerações literárias espanholas: Juan Ramón Jiménez e Luis Rosales. O lugar do primeiro, na poesia ibérica do século 20, é simplesmente entre os gigantes Antonio Machado e Federico García Lorca (além de ter sido distinguido com o prêmio Nobel de literatura, em 1956).
Não é pouco, mas não é exatamente pela láurea sueca — às vezes, duvidosa — que se deve medir a importância de Juan Ramón Jiménez, grande de Espanha na poesia e “poeta de Moguer”, conforme ele preferia se apresentar, quando necessário (nunca era, na verdade, e todo mundo perguntava: “Moguer? Onde fica Moguer?”)…
Vivia exilado desde o final da Guerra Civil que devastara o seu país, e, no final, já não estava bem de saúde, ao tentar finalizar um longo poema intitulado Tempo e espaço. Acima de tudo, lembrava da infância — em Palos de Moguer — mais do que jamais a recordara, antes, em países e hotéis estranhos, ao longo do tempo que não se passa da mesma maneira para os poetas verdadeiramente grandes. Moguer le dolía — como só doem os primeiros amores.
“Ó mãe, de algo me esqueço que não sei que seja…/ Ó mãe, que é que eu olvido? — A roupa já está toda, filho./ — Sim, mas algo falta que não sei que seja/ Ó mãe, que é que eu olvido?/ — Já não vão os livros todos, filho?/ — Todos, mas algo falta que não sei que seja…” etc. O poema de Jiménez intitulado O adolescente prossegue assim, nesse comovente cantochão no qual uma mãe supervisiona as coisas no dia da partida do filho, e este sente falta antecipada dela, das “auroras diferentes, dos matinais caminhos, dos distantes eucaliptos noturnos” — até que todas as perguntas são caladas pelas respostas dispersivas, a mala rústica é fechada, e “o menino do carabineiro grita, atrás do carro: Adeus!”.
Jiménez ficou em Moguer, na província de Huelva (onde nasceu, em 1881), durante quase toda a vida — da imaginação. Fisicamente, ele logo tomou o rumo de Sevilha, e, depois, já estava na Madri de 1900, tentando sobreviver numa capital muito agitada para o seu temperamento melancólico, se não mesmo algo sombrio e sempre sentindo a falta de “alguma coisa que não estava ao pé de si”, como recordava o poeta Rafael Alberti, um dos seus mais jovens amigos (como García Lorca e outros).
Na Madri do começo do século, Juan foi encontrar o gênio nicaragüense de Rubén Darío, chefe de escola do Modernismo que vinha tentando renovar a poesia hispano-ibérica ainda emperrada naquelas tradições emanadas do “Século de Ouro”. Para o poeta Pedro Salinas — em El Problema del Modernismo em España — embora esse modernismo tenha desembarcado “imperialmente em Madri, buscando um poesia dos sentidos, trêmula de atrativos sensuais e deslumbrante de cromatismo um tanto estetizante demais” etc., o fato é que jovens poetas como Jiménez, no contato com Darío e outros sul-americanos — além de alguns espanhóis inquietos com a fossilização da forma poética novecentista — puderam lustrar de brilhos novos as velhas palavras castellanas (Juan Ramón fazendo uso de “las más exquisitas notaciones de sensibilidas, de matiz y de sonido que han salido de la poesia modernista española”).
Para Pedro Salinas, na maturidade o poeta de Moguer iria, entretanto, extrapolar — por méritos próprios — o perfil do modernista espanhol da primeira hora. Com grande argúcia crítica, Salinas analisa, por exemplo, o poema Veio, primeiro, pura, incluído no livro Eternidades (que Jiménez publicou em 1916), para encontrar nele o fio de meada do caminho de um poeta já libertado mesmo das boas influências. Ou seja, nos versos célebres, primeiro se tem a etapa da inocência e da simplicidade formal. Logo, a “rainha faustosa de tesouros”, de roupagens estranhas etc., alude alegoricamente à rica sensualidade da poesia modernista, que Jiménez também havia cultivado. O poema passa a expressar, então, o cansaço disso, e o desgosto do bardo diante desse conceito da poesia, o que o faz chegar até o “ódio” (dele/dela), até só voltar a sorrir para a “amada”, quando esta se despoja das vestes suntuosas e volta a se entregar à pureza “desnuda” — que equivaleria ao período pós-modernista da obra do prêmio Nobel de 40 anos depois.
Ou seja, da brava geração de 1898, Juan Ramón partira para depurar ao máximo a sua expressão poética, encontrando a dicção própria pela qual seguiria ainda mais longe, ao revisar, incansavelmente, mesmo os poemas anteriores, publicados ou não. No mesmo ano da publicação de Eternidades, o poeta se casou e, então, produziu alguns dos mais belos poemas de amor da poesia já rica no gênero. Ele havia expandido e contraído o verso, respectivamente de acordo com o modernismo e com aquilo que o poeta e crítico português Jorge de Sena chamou de “interiorizadas pesquisas das vivências ao longo de décadas ricas de mudança”. Ao final disso, Jiménez estava livre para escutar — como todo poeta maior — a voz autônoma que sempre carregara consigo, desde a partida de Moguer… Porém um fato exterior viria de encontro à paz necessária para se completar o seu projeto poético.
Nuvens sombrias do mundo da política se acercam da Espanha para fazer de Guernica o campo de experimentação da também “nova” destruição em massa. A beleza está em perigo, e a República espanhola sofre debaixo das botas dos nacionalistas de Francisco Franco, avançando para calar, matar e instaurar a ordem da Direita triunfante também em Portugal, na Itália e na Alemanha. E isso atingiria até a vida interior dos poetas.
A vida interior? Não, não só isso: a vida mesma deles está sob ameaça, e o jovem Lorca, amigo de Jiménez, é o primeiro a tombar sob as balas de ódio do regime que escreve horríveis “poemas”, com o sangue dos inocentes. (“Viva la Muerte!”, conforme o grito de uma platéia alucinada, que o general franquista Millán Astray adotaria como sinistra divisa). Juan Ramón Jiménez decide, então, abandonar a pátria — e essa será a segunda dor da sua vida.
Platero e eu
Até aqui, se falou de Jiménez sem mencionar o livro pelo qual ele é mais conhecido: Platero e eu, de 1914, uma obra que remonta ao ambiente campesino de Moguer, com a sua gente simples — e um humilde burrico sob o foco central.
Gerações se encantaram com as historietas contadas nessa obra, a respeito de um animal descrito com inesquecível ternura:
Platero é pequeno, peludo, suave; tão macio, que dir-se-ia todo de algodão, que não tem ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são duros como dois escaravelhos de cristal negro. Deixo-o solto, e vai para o prado, e acaricia levemente com o focinho, mal as roçando, as florinhas róseas, azuis-celestes e amarelas… Chamo-o docemente: “Platero”, e ele vem até mim com um trote curto e alegre (…) pelas últimas ruelas da aldeia. Os camponeses, vestidos de escuro e vagarosos, param a olhá-lo: — Tem aço… Tem aço. Aço e prata de luar, ao mesmo tempo.
Sem dúvida que a popularidade do livro foi fundamental, na atribuição do prêmio Nobel ao poeta exilado primeiramente em Coral Gables. O galardão da academia sueca reconhecia o poder de comunicação da obra (uma espécie de O pequeno príncipe de antes da Segunda Grande Guerra), mas também tentava chamar a atenção para o veio principal da poesia do espanhol exilado como Pedro Salinas, Rafael Alberti e tantos outros espanhóis de talento espalhados pelo mundo. Platero não deixou de se tornar, infelizmente, um redutor da importância de Juan Ramón como poeta profundo, complexo e, ao mesmo tempo, pleno de lirismo arrebatador. Essas qualidades se evidenciam, em grau avançado, nas partes que restaram concluídas daquela que ele planejou para ser a sua obra-prima, como visão do mundo e testamento literário: Tempo e espaço, um longo poema, com trechos em prosa intercalados com a poesia jimeneziana típica, na sua maturidade de artista e homem que havia “sofrido” o seu século também na carne cansada.
Para infelicidade dos admiradores do poeta, Tempo e espaço restou inacabado, com muitas variantes escritas no período final, quando o equilíbrio psicológico de JRM também se via atingido pela distância da Espanha, de Madri — e de Moguer.
Dois anos depois da viagem a Estocolmo, para receber o Nobel das mãos de um representante das monarquias européias (que ele detestava), Dom Juan Ramón Jiménez faleceu em Porto Rico, no dia 29 de maio de 1958, aos 77 anos. E deixou muito mais do que Platero e eu, para todos que amem a alta poesia que nos torna mais humanos, ao dilatar a consciência em contato com a beleza imortal.
Dois poemas de Juan Ramón Jiménez
VEIO, PRIMEIRO, PURA
Veio, primeiro, pura,
vestida de inocência;
amei-a como um menino ama.
Logo se foi vestindo
de não sei eu que roupagens;
fui odiando-a, sem saber.
Chegou a grande rainha,
Faustosa de tesouros…
Que fúria de fel eu tive!
Mas foi-se desnudando
e eu lhe sorrindo.
Quedou-se apenas na túnica
de sua inocência antiga.
De novo acreditei nela.
Despiu então a camisa
E surgiu toda desnuda…
Paixão da longa vida, poesia,
mais uma vez nua
e para sempre minha!
A MINHA ALMA
Sempre tiveste a rama preparada
para uma rosa justa: andas alerta
sempre de ouvido quente à porta certa
do corpo teu, à flecha inesperada.
Nenhuma onda acaso vem do nada
que não arraste de tua sombra aberta
a luz mais ampla. De noite, estás desperta,
em tua estrela, à vida que se desvela.
Signo indelével pões às coisas todas.
E logo, feita glória de altos cumes,
Reviverás em tudo quanto selas.
Tua rosa será norma para as rosas;
o que ouves, da harmonia; e dos lumes,
o teu pensar; e teu velar, o das estrelas.