Não é nenhum fato extraordinário que as iniciativas de adaptação de livros para o cinema priorizem os clássicos de cada país ou cultura. Ou seja, as obras que atravessaram os tempos e, de algum modo, permanecem novas (razão por que se tornaram “clássicas”). Ou, então, o clássico que já nasceu clássico e, assim, pôde se impor à sua época mesma, tudo isso atraindo produtores e cineastas respectivamente interessados no desafio da obra renomada etc.
No Brasil, são dois os casos que se encaixam nessa rubrica: o do carioca Machado de Assis e o do mineiro João Guimarães Rosa. Carioca? Mineiro? Que importa isso, para um clássico que transcende fronteiras internas e até aquelas das nações? Machado é considerado, unanimemente, o maior romancista brasileiro, e Rosa é o monumento moderno da nossa prosa — com ou sem rima. E ambos foram necessariamente levados para a tela, se bem que com menos acertos de transposição do que com resultados apenas medianos, em geral, e, em alguns casos, até pífias adaptações tendo em vista a estatura das obras de origem: os contos e romances desses dois gigantes ou totens da nossa literatura.
Comecemos por fazer um rápido inventário das versões cinematográficas das narrativas do “bruxo” do Cosme Velho, sutil como um mandarim na sua arte de rendilhados e penetrações psicológicas — de modelo stern-sthendaliano — achatados em filmes que raramente conseguiram transmitir ao menos uma centelha do melhor da obra do (vá lá!) genial mulato Joaquim Maria Machado de Assis, criador em vários gêneros e autor de pelo menos duas obras-primas indiscutíveis: Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas (sem falar de joias bem trabalhadas como O alienista e outras).
O primeiro filme feito a partir de um texto seu foi o curta-metragem Um apólogo, baseado no texto homônimo. Quem o dirigiu foi o pioneiro Humberto Mauro, com a colaboração de Lúcia Miguel Pereira, em 1936. Três anos depois, o mesmo Mauro — agora junto com Roquette Pinto — curiosamente repetiria a dose, fazendo um novo curta com base na mesmíssima obra do fundador da Academia Brasileira de Letras. Conheço essa produção, realizada com o apuro do cineasta de Cataguases, e desconheço a razão para os dois filmes retirados de Um apólogo terem sido realizados com apenas três anos de intervalo, pelo mesmo diretor, com dois parceiros diferentes. Seja como for, se isso parecia sinalizar no sentido de começar a ser bem aproveitada a literatura de Machado de Assis no cinema tupiniquim (a partir dessa “reincidência” do velho Humberto), foi exatamente o contrário que se deu: o nosso escritor maior só voltaria a fornecer o argumento para uma produção cinematográfica vinte e dois anos depois, em 1961, quando o argentino Carlos Hugo Christensen resolveu rodar o medíocre Esse Rio que eu amo, um longa-metragem de episódios entre os quais se encontra aquele inspirado em Assis: Noite de almirante.
Sete anos depois, apareceria outra longa: Viagem ao fim do mundo, livremente baseado nos capítulos O delírio e O senão do livro, da obra-prima Memórias póstumas de Brás Cubas, sob a direção do desigual Fernando Cony Campos. Quando o carioca Cony acertava — como em Ladrões de cinema — ele costumava oferecer narrativas ágeis e inspiradas, porém, quando errava a mão (e a mão de FCC esteve bem pesada nessa obra feita a machadadas), Campos errava feio, reconheçamos.
Em 1968, surgiria o primeiro filme debruçado sobre Dom Casmurro, dirigido por um cineasta de talento — Paulo César Saraceni —, com o título mais feminino de Capitu, e que só ficaria a nos dever somente aquele “olhar de ressaca” da personagem (algo entre a mirada enevoada de Anecy Rocha e os olhos-de-mormaço da jovem Norma Benguell) vivida por uma atriz mal escolhida: Isabella Campos. No mais, um filme cercado de talentos, desde o roteiro do próprio diretor e do casal Paulo Emílio Salles Gomes e Lygia Fagundes Telles, até a excelente fotografia de Mário Carneiro e a música do pernambucano Marlos Nobre. Três anos depois, o ótimo O alienista seria transposto para a tela por Nelson Pereira dos Santos, com o título de Azyllo muito louco. Esse longa, bem humorado e delirante (como não poderia deixar de ser), iria abrir, afinal, uma espécie de “filão” de Machado de Assis no cinema brasileiro dos anos “Embrafílmicos”, digamos, com A causa secreta (1972), adaptado e dirigido por José Américo Ribeiro, baseado no conto do mesmo título; A cartomante (1974), de Marcos Farias, baseado no relato homônimo; O homem célebre (1974), de Miguel Faria Jr, também baseado no conto com esse título; Confissões de uma viúva moça (1976), de Adnor Pitanga, e Que estranha forma de amar (1977), de Geraldo Vietri, a partir de um romance que há muito já merecia ter ido para o cinema: o leve e delicioso Iaiá Garcia.
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