Assim falou Wystan Hugh Auden (1)

Algumas opiniões de um poeta enorme, um homem íntegro e um ser sincero e corajoso
Wystan Hugh Auden
01/10/2007

Ele foi um dos mais importantes e influentes poetas do século 20, na opinião unânime da crítica e no acolhimento por parte dos leitores de poesia (que já foram muitos).

Wystan Hugh Auden nasceu em 1907, em York, e foi aluno em Oxford, universidade na qual se tornou a principal figura daquele grupo de poetas — todos jovens e idealistas — que professavam pungente fé no pensamento marxista, nos anos de 1930. E se é para recordar uma generosa cabeça pensando no que fazer — mais do que encher páginas e páginas de versos comovidos pela situação dos humilhados e ofendidos, e contra a opressão das classes abastadas apoiadas pelos poderes sem poesia —, andemos sete anos, desde 30, e procuremos, nas ambulâncias republicanas conduzindo corpos despedaçados na dramática Guerra Civil espanhola, um jovem inglês de vasta cabeleira, arriscando a vida por entre tiros e bombas (e amando rapazes que iriam morrer, talvez, no dia seguinte). É ele, Auden.

Wystan escreveu, naquela época, o poema Spain — e ficou famoso quase da “noite para o dia”, na medida em que um poeta podia ficar mais famoso, naquela época, do que a Bruna Surfistinha, hoje (27 de setembro) brilhando na festa literária pernambucana chamada de Fliporto, realizada em Porto de Galinhas (terá sido um trocatrilho dos organizadores do sub-Flip? Se foi, a minha mais sincera solidariedade com a menina, diante da piada de mau gosto deles; se não foi, fica sem comentário).

Voltemos ao poema Spain: “é uma das grandes afirmações poéticas em favor de uma visão esquerdista e liberal”, na opinião de Jorge de Sena (esse esquecido poeta e agitador cultural, em Portugal — sem rima e sem as homenagens devidas não só lá, na sua terrinha).

Pelo andar da carruagem, entre as surfistas e o Sena, vai demorar até que eu chegue ao fim desta minibiografia que antecede (ela é apenas para isso) uma seleção de pensamentos de W. H. Auden, oportunos como as manobras dos que estão tentando “espetacularizar” a literatura (nos Flips e Flops, entre outros). Mas, Auden é sério, grande poeta e, por isso, merece ser ouvido, sempre.

Vamos lá. Em 1938, ele se estabeleceu nos Estados Unidos. Ali, os rapazes pareciam menos “incucados” do que na velha e querida Inglaterra, entre outros motivos. Foi mais longe, o inglês Hugh: solicitou a cidadania americana, e viria até a marchar, do seu agnosticismo de estudante, etc., para o anglo-catolicismo que professaria pelo resto da vida.

Em 1956, foi feito professor de Poética, em Oxford, sem abandonar o seu apartamento de Nova York. Já pensou? Ser aluno de Poética, de Auden!, entre as velhíssimas paredes de Oxford?

Nota: Inveja retrospectiva, saudade do que não foi — nem poderia ter sido (nasci em 1949).

Antes de morrer, ele voltou — de vez — para a Inglaterra. De lá, viajava para ler seus poemas e fazer conferências, até morrer num hotel de Viena, em 1973, autor de uma obra que merecia o prêmio Nobel daqueles velhinhos da academia sueca (mais de um milhão de dólares) que, ano passado, premiaram um romancista turco medíocre. Quanto a brasileiros, até agora só houve um (o gaúcho Lúcio Graumann) escolhido para receber a láurea em Estocolmo. Infelizmente, Graumann veio a falecer, não de emoção (como João Guimarães Rosa, depois da posse na ABL, imaginem!), num hospital aqui do Recife, um mês antes de embarcar para a Suécia.

Isso não tem nada ver com W. H. Auden, é claro. E o que ele falou? Tanta coisa! Tanta coisa dita por um poeta enorme, um homem íntegro e um ser sincero e corajoso. Auden deveria ser escutado, ouvido e re-ouvido, nas suas lições de inteligência, sutileza e penetração nas coisas. Tento ajudar nisso, nesta hora agônica de tanta confusão de valores e até mesmo loucura (que passa por sanidade), pinçando o que ele disse, sábio como Zaratustra:

O escritor, ou ao menos o poeta, vive constantemente enfrentando pessoas que lhe perguntam: “Para quem você escreve?”. Obviamente, trata-se de uma pergunta muito tola, para a qual posso dar ao menos uma resposta singular. De vez em quando sinto que um livro foi escrito especialmente para mim, só para mim. Como um amante zeloso, quero evitar que o mundo conheça sua existência. Sem dúvida o sonho de um autor é ter um milhão desse tipo de leitores, que o leiam com paixão e desconheçam a existência dos outros apaixonados.

Nota: Isso aí precisaria ser meditada por todos que pensam que literatura pode se transformar numa coisa de massa, igual a qualquer evento do mundo pop/rock. Não é assim. Literatura é outra coisa.

Atacar os maus livros não é só uma perda de tempo, mas também um perigo para o caráter. Se um livro me parece realmente ruim, o único interesse que posso ter para escrever sobre ele é a exibição de minha inteligência, minha capacidade e malícia. É impossível alguém descrever um livro ruim sem pavonear-se.

Nota: Eu, nós, o Rascunho, suplementos e revistas de cultura, todo mundo: pensemos nessa lição segura e tranqüila, de um velho poeta sem pressa, à beira do rio veloz da vida.

Entretanto, há um mal literário que nunca se deve deixar passar em silêncio, mas ser atacado continuamente, e esse é a corrupção da linguagem. Já que os escritores não podem inventar sua própria linguagem e dependem da que herdam, conclui-se que a corrupção desta implica tacitamente na daqueles.

Nota: Porque tinha o espírito assim atento, é que Auden foi — realmente — grande.

Sem dúvida, podemos censurar, nos críticos, o hábito de colar etiquetas e rótulos sobre a cabeça dos autores. No princípio, classificavam os autores como “Antigos”, isto é, gregos e latinos, e “Modernos”, quer dizer, pós-clássicos. Mais tarde, por épocas: Augustinianos, Vitorianos, etc. Agora os classificam por décadas: escritores dos anos 30, dos 40 e por aí vai. Tudo indica que, logo, os autores serão rotulados por anos, como os automóveis.

Nota: Ah, ah, ah.

O oráculo profetizava e dava bons conselhos sobre o futuro, e nunca pretendeu dar um recital de poesia. Se os poemas fossem criados em transe e sem a participação consciente do poeta, a poesia seria uma operação tão tediosa que apenas uma sólida recompensa econômica e social animaria um homem a praticá-la.

 A Musa é uma jovem ardente que foge tanto dos seguidores vis como dos estúpidos. Aprecia o cavalheirismo e os bons modos, mas despreza os que demonstram não estar à sua altura e se diverte ditando-lhes necessidades e mentiras que eles, obedientemente, anotam como verdade “inspirada”.

Nota: Verdadeiro. E inspirado.

As opiniões críticas de um escritor devem sempre ser tomadas como um imenso grão de sal. Geralmente, são manifestações da polêmica que leva consigo mesmo sobre o que deve continuar fazendo e o que deve evitar.

Nota: Velho Auden!, os que escrevem te saúdam: é isso mesmo.

Os interesses do escritor e os dos seus leitores nunca coincidem, e, quando isso acontece, não é senão um feliz acidente.

Nota: Fiquei pensando nisso. E Auden complementa:

Ler é traduzir, pois não há duas pessoas que compartilhem as mesmas experiências. Um mau leitor é como um tradutor ruim: interpreta literalmente quando deveria parafrasear e parafraseia quando deveria interpretar literalmente. No aprendizado da literatura, a educação apurada é sem dúvida menos importante que o instinto. Grandes eruditos foram péssimos tradutores…

Nota: Wystan, Wystan, fale mais sobre isso.

Apesar de uma obra literária consentir várias leituras, o número destas é finito e pode ser ordenado hierarquicamente; claro que algumas leituras serão “mais certas” do que outras. E algumas serão duvidosas, e algumas certamente falsas, enquanto outras — como a leitura de uma novela do fim para o começo — absurdas. É por isso que, para uma ilha deserta, alguém poderia escolher um dicionário em vez de uma perfeita obra-prima, pois a passividade do dicionário junto aos leitores o converte em temas de infinitas leituras.

Nota: Sugestão de temas gerais para os próximos Flip e Flip-cover (o Fliporto): discutir os dicionários como “obras-primas” em potencial, virtuais e portáteis, em princípio (se não forem muito pesados), para se carregar, na sunga, rumo a qualquer praia, qualquer ilha, qualquer lugar longe o bastante da multidão de vozes que não parecem ter um pingo da sabedoria sensata — no melhor sentido — do poeta Wystan Hugh Auden.

E isto continua. Para a nossa educação poética, literária e moral e cívica, virá, em novembro, a parte dois (e final) deste Assim falou Wystan Hugh Auden. Até o Renan Calheiros poderá, quem sabe, lucrar com a leitura — e sumir numa ilha deserta, para sempre, com o Código Civil debaixo do sovaco malcheiroso, no lugar dos dicionários passivos como o Senado da República.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho